• Em ‘Siameses’, escritor Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira prova ser mestre

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  • 05/12/2021 08:30
    Por Martim Vasques da cunha, especial para AE / Estadão

    Na casa vazia da literatura brasileira contemporânea, surge agora um livro que certamente fará a ambição dos nossos literatos explodir de inveja ou desprezo. Trata-se do assombroso e gigantesco Siameses, de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira – um romance de 1.336 páginas que, ao ser corajosamente publicado por uma editora à margem do mercado editorial (Kotter), apenas faz no nosso vazio intelectual o que, em 1956, Guimarães Rosa provocou com o lançamento praticamente simultâneo de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas.

    Os superlativos não são um exagero. Quando um livro deste tipo surge no panorama, não devemos ter medo de elogiá-lo. Há de se ter a obrigação de fazer o que o poeta polonês Adam Zagajewski chamava de “em defesa do fervor”. Pois Siameses é, de fato, um romance concebido, criado e escrito no meio do fervor. Porém, um fervor extremamente calculado, construído sobre bases múltiplas que misturam o grotesco, o lírico, o digressivo, o intelectual – e, sobretudo, o diabólico.

    BOA TRAMA. Como toda boa trama romanesca, torna-se impossível resumir o assunto do livro. Em uma longa conversa entre dois amigos, Osmar (o único que fala) e Procópio (o que fica aparentemente calado o tempo todo), sabemos do triângulo amoroso (ou seria quadrado?) entre o operário metido a intelectual Tomás, sua esposa, a enfermeira Rebeca e a vendedora Azelina, uma jovem apetitosa que atiça os desejos do primeiro e o coloca em uma verdadeira odisseia do azar. Aparentemente, essa história não nos diz nada – e mal seria uma razão para o leitor comum acompanhá-la se não fosse por um detalhe que Antonio Geraldo faz questão de mencionar constantemente no livro: o que estamos a ler não é uma mera quadrilha à la Drummond, e sim um resumo histórico dos últimos 40 anos do que aconteceu, em microcosmo, nesta nação gigantesca que é o Brasil.

    METÁFORAS. Para relacionar esses dois planos, Siameses constrói uma trama de símbolos e de metáforas, espalhadas por meio de digressões que visam despistar o leitor. Por um lado, ela dialoga tanto com a tradição temática do Modernismo Brasileiro de 1922, com seu antropofagismo, ao analisar a brasilidade esteticista, como com a linha do Modernismo Europeu, em especial o romance enciclopédico celebrado por James Joyce em Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939) ou pelo poema A Terra Devastada (1922), de T. S. Eliot.

    PRÓSPERO. É um fenômeno já descrito por Richard M. Morse em seu magnífico ensaio O Espelho de Próspero, em que a imersão no caos e no anonimato das grandes cidades – ou, no caso de Siameses, no interior fronteiriço entre São Paulo e Minas Gerais – somente nos leva a um centro desatado do que deveria ser a “comoção da vida”. Tudo isso converge para uma visão de mundo que acompanhava Antonio Geraldo em seu romance anterior, o celebrado As Visitas Que Hoje Estamos (2014), na qual o colapso existencial do País se soma agora ao encontro da raiz de todos os nossos problemas políticos, morais, sexuais e econômicos. Trata-se da nossa atração insaciável por aquilo que hoje podemos chamar sem hesitação de “o contágio da mentira”, o qual corrói o Brasil do início ao fim, do topo até o chão, do chão até o nosso subsolo irracional.

    MENTIRAS. Em Siameses, enquanto o leitor acompanha as peripécias de Tomás para seduzir Azelina e enganar Rebeca, com toda a destreza narrativa comunicada por Osmar a Procópio, pouco a pouco as noções de verdade e mentira, fato e ficção, realidade e alucinação tornam-se cada vez mais imprecisas. Daí o título do romance: tudo está inevitavelmente ligado, numa irmandade macabra que, como o próprio projeto estético de Antonio Geraldo antecipou desde a primeira linha do romance, nos leva desses filhos da mentira ao próprio pai da falsidade.

    A ambiguidade que surge desta trama é poderosa, pois ela se alimenta da própria novidade que o gênero romance apresenta à sociedade em que se insere. Em inglês, o romance é também “novel”, que, se aqui pode ser a novela (um gênero anfíbio assim simplificado por causa do tamanho das suas páginas), é também o novo a surgir toda vez que nos encontramos na casa vazia das palavras sem sentido.

    Assim, o que Siameses faz para as nossas letras é uma espécie de “destruição criativa”, na qual a divisão entre a palavra a descrever a vida e a própria vida fraciona cada linha do romance de Antonio Geraldo, para depois ele sempre retornar à unidade da trama literária. Mesmo assim, o escritor preserva o fervor típico de quem sabe que, para criar, é necessário muitas vezes demolir o que achávamos ser o fundamento de todas as coisas petrificadas do nosso passado e que precisam de um novo sopro. Neste espelho literário, digno de Próspero, a obra-prima de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira nos presenteia com um modo para reconstruir o Brasil, esteticamente e moralmente. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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