Controle de interceptação telefônica opõe Secretarias e Polícia Civil nos Estados
A Operação Éris, aberta em outubro contra o governador afastado do Tocantins, Mauro Carlesse (PSL), reacendeu a discussão sobre o controle dos sistemas de interceptação telefônica pelas Secretarias de Segurança Pública dos Estados.
Ao longo da investigação que atingiu Carlesse, a Polícia Federal identificou que o núcleo responsável pelas interceptações não fazia parte da estrutura administrativa da Polícia Civil do Tocantins. O departamento existia sob o guarda-chuva da chamada Diretoria de Inteligência e Estratégia, órgão vinculado à Secretaria de Segurança do Estado.
Na prática, todos os pedidos de interceptação telefônica formalizados pela Polícia Civil passavam pelo departamento, comandado por um diretor que, segundo o regimento interno, era responsável por assessorar o secretário de Segurança.
Em representação enviada ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Polícia Federal disse que o modelo permite o ‘uso indiscriminado e arbitrário do aparato estatal’.
“O regimento interno da Secretaria de Segurança Pública do Tocantins busca conferir ares de legalidade à prática de interceptação telefônica por uma diretoria de inteligência, órgão de natureza claramente política, com ambiente propício a atuações de caráter não-republicano e ilegal”, diz um trecho do documento.
A PF também chamou atenção para o risco de instrumentalização da estrutura para ‘instauração de investigações, coleta de dados ou outras atuações ilegais ou com desvio de finalidade em face de adversários ou autoridades que investiguem o atual governo’.
O caso do Tocantins não é isolado. Um levantamento feito pelo Estadão mostra que ao menos dez outros Estados ainda replicam ou replicavam até recentemente modelos equivalentes, o que tem o potencial de facilitar o uso político dos meios de investigação.
É o caso da Bahia. A Polícia Federal acusou a apropriação dos sistemas de interceptação na esteira da Operação Faroeste, que investiga a venda de decisões judiciais no Tribunal de Justiça do Estado. Em dezembro do ano passado, as apurações atingiram o então secretário de Segurança Pública, o delegado federal Maurício Barbosa, posteriormente exonerado do cargo. Os policiais federais apontaram a ‘cooptação’ da pasta e trabalham com a hipótese da execução de grampos ilegais para chantagear e ‘neutralizar’ opositores do suposto esquema.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública informou que, desde o início do ano, começou o processo de transferência da estrutura para a Polícia Civil.
“No que diz respeito à tecnologia utilizada nas interceptações telefônicas, a SSP ressalta que está em andamento a execução do plano de descentralização para a Polícia Civil, com a capacitação do efetivo, adequação das estruturas físicas e de tecnologia da informação”, diz o texto.
Controle dos sistemas de interceptação telefônica opõe Secretarias de Segurança e Polícia Civil nos Estados. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
No Amazonas, as suspeitas de uso indevido do sistema de interceptação telefônica vieram a público a partir da Operação Garimpo Urbano. O aparato vinha sendo gerenciado pela Secretaria-Executiva Adjunta de Inteligência, subordinada à Secretaria de Segurança Pública do Estado. Em setembro, a PF prendeu o ex-secretário adjunto de Inteligência Samir Freire e três policiais sob suspeita de uso indevido da estrutura para roubar ouro.
Após a operação, o Ministério Público do Amazonas emitiu uma recomendação ao governo sugerindo a transferência do sistema para a Polícia Civil. O objetivo, segundo o documento, é ‘coibir a ação de agentes públicos ligados a órgão de cúpula da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas, que utilizavam-se da estrutura de inteligência e possivelmente do sistema “Guardião” para fins supostamente ilícitos’. Procurada pela reportagem, a pasta disse que a orientação foi cumprida.
Sobretudo nos últimos dois anos, o Ministério Público Federal (MPF) e os Ministérios Públicos dos Estados têm apresentado recomendações, ações civis públicas e termos de ajustamento de conduta para tentar coibir o uso indevido dos sistemas de interceptação.
Documento
LEIA AS RECOMENDAÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO
No Piauí, a adequação foi iniciada após recomendação conjunta do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Estado. O documento, enviado em dezembro do ano passado, pediu a transferência de todos os equipamentos e estruturas tecnológicas de monitoramento de interceptações telefônicas que estavam no Núcleo de Inteligência da Secretaria de Segurança.
“A tramitação da medida cautelar de interceptação de comunicações telefônicas deve ocorrer exclusivamente entre o Poder Judiciário, a Polícia Judiciária e o Ministério Público, sem qualquer participação ordinária de outro órgão estatal, com vistas à preservação do sigilo das investigações realizadas e das informações disponibilizadas, de forma a garantir a efetividade da prova e da instrução processual”, alertou a recomendção.
Ao Estadão, a Secretaria de Segurança informou que ‘sempre tratou o serviço de inteligência de forma técnica e em prol do serviço público’. Também afirmou que o MP atestou não ter conhecimento de nenhum caso de uso indevido do sistema.
Alagoas foi um dos primeiros Estados a receber uma recomendação do Ministério Público Federal, em agosto de 2017, para transferir a estrutura de monitoramento. Há mais de dez anos, o Estado vem permitindo a operacionalização de interceptações telefônicas não só por meio da Secretaria de Segurança, através da Assessoria Integrada de Inteligência, como pela Polícia Militar.
A recomendação, no entanto, não foi atendida, o que levou o Ministério Público Federal a entrar com uma ação civil em 2019. O processo corre na Justiça Federal de Alagoas. Até o momento, não houve decisão sobre o mérito do pedido.
O quadro identificado em Alagoas é muito parecido com a realidade recente em Rondônia. O sistema de interceptação, alocado na Gerência de Estratégia e Inteligência da Secretaria de Segurança, também podia ser acessado por servidores da pasta e policiais militares. O Ministério Público do Estado notificou o governo em maio de 2019.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Segurança informou que atendeu a recomendação e transferiu o sistema para a Polícia Civil em junho do ano passado.
“Independentemente do órgão que administre-o, o Sistema Guardião não permite a realização de interceptação telefônica sem autorização judicial”, disse a pasta em nota.
No Rio Grande do Norte, a investida do Ministério Público do Estado foi convertida em um Termo de Ajustamento de Conduta. Em outubro do ano passado, a Secretaria de Segurança se comprometeu a transferir a gestão da Central de Computação Digital, onde são operadas as interceptações, para a Delegacia-Geral da Polícia Civil. O acordo livra a pasta de responder a uma eventual ação civil pública pela conduta.
Desde a sua implantação, no início dos anos 2000, o sistema de interceptação telefônica do Espírito Santo foi mantido dentro da Subsecretaria de Inteligência, vinculada à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social. A gestão atual começou o que chamou de ‘transição gradativa’ da estrutura para a Polícia Civil.
“Foi detectada a necessidade de estruturação tecnológica robusta para que a Polícia Civil possa gerir a questão das interceptações telefônicas, estruturação essa que está em andamento, para que futuramente a ferramenta seja repassada à PCES”, diz em nota.
Há ainda três outros Estados que mantêm os sistemas de interceptação sob o guarda-chuva das respectivas Secretarias de Segurança: Ceará, Paraíba e Paraná. Eles não responderam aos sucessivos contatos da reportagem, por e-mail e telefone, questionando se têm planos para transferir a estrutura para a administração direta da Polícia Civil.
O tema também é espinhoso porque opõe Secretarias de Segurança e Polícia Civil. Embora a corporação tenha independência para conduzir as investigações, o governador tem a prerrogativa de indicar o diretor-geral.
O Estadão conversou com os delegados Nadine Anflour, chefe de Polícia Civil do Rio Grande do Sul, e Mário Dermeval Aravechia de Resende, delegado-geral do Mato Grosso. Eles são, respectivamente, presidente e vice-presidente do Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil do Brasil (CONCPC). A posição do colegiado é que os sistemas devem ser mantidos, física e administrativamente, sob gerência da Polícia Civil. O entendimento é compartilhado pelo delegado Juliano Carvalho, que preside o Comitê Nacional dos Chefes de Inteligência da Polícia Civil.
“É unânime a opinião de que os sistemas de interceptação são de gerência da Polícia Judiciária, e vamos além, todas as ferramentas de investigação e repressão criminal devem estar sob a governança delas, incluindo os laboratórios de combate à lavagem de dinheiro”, afirmam.
Controle dos sistemas de interceptação foi tema de reunião do Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil nesta semana. Foto: Reprodução/CONCPC
Segundo os delegados, a demanda entre os quadros da Polícia Civil dos Estados não é recente. “Muitos já avançaram e estão de posse nas suas sedes, dos equipamentos e ferramentas de investigação, mas infelizmente ainda temos alguns Estados que insistem com essa gestão equivocada de se fazer Segurança Pública”, avaliam.
Por lei, a Polícia Civil é responsável por conduzir investigações penais no âmbito estadual. Além disso, desde 1996, a lei de interceptação telefônica prevê, em seu artigo 6º, que a ‘autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização’.
“Em se tratando de ferramentas de investigação criminal, não se pode conceber que estejam vinculadas ou de posse da Secretaria de Segurança Pública, a quem cabe, apenas, traçar estratégias de combate ao crime e políticas públicas”, defendem Nadine e Resende.
Como revelaram na prática as operações Éris, Faroeste e Garimpo Urbano, um dos principais riscos da manutenção dos sistemas de interceptação na estrutura das Secretarias de Segurança continua sendo a chance de apropriação do aparato público para fins particulares e até ilegais.
“A partir do momento que pessoas ou entes estranhos se apossam dessas ferramentas, utilizando não o viés investigativo criminal, mas interesses escusos na sua finalidade ou mesmo no acesso de informações privilegiadas, outros serão os resultados. Além de prejudicar a investigação, poderão se utilizar desse conhecimento para informar parceiros políticos, grupos interessados, desviar a investigação, esconder provas, maquiar a ocorrência de crimes, e por que não dizer o fomento de atos de corrupção e venda de informações”, alertam os delegados.
Leia a íntegra das manifestações enviadas pelos Estados:
COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DO AMAZONAS
“A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) informa que adotou todos os procedimentos solicitados pelo MP e que encaminhou o processo para a Polícia Civil do Amazonas.”
COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DA BAHIA
“A Secretaria da Segurança Pública da Bahia esclarece que, desde o início de 2021, foram iniciados os processos de transferências do Laboratório de Tecnologia Contra Lavagem de Dinheiro (LAB-LD) e dos equipamentos utilizados, em interceptações telefônicas, para a Polícia Civil. A pasta informa que, no início deste ano, o LAB-LD passou a ser coordenado pela PC. No que diz respeito à tecnologia utilizada nas interceptações telefônicas, a SSP ressalta que está em andamento a execução do plano de descentralização para a Polícia Civil, com a capacitação do efetivo, adequação das estruturas físicas e de tecnologia da informação. Por fim, acrescenta que nas cidades baianas de Feira de Santana, Eunápolis e Vitória da Conquista as interceptações já são coordenadas por policiais civis.”
COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DO ESPÍRITO SANTO
“A Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social do Espírito Santo (Sesp) informa que desde que se implantou o sistema de interceptação telefônica no Estado, no início dos anos 2000, ele foi idealizado na estrutura da Sesp, dentro da Subsecretaria de Inteligência, que tem como gestor, atualmente, um delegado da Polícia Civil. A atual gestão, entendendo a necessidade de mudança nessa estrutura, já iniciou o processo de transição gradativa para a Polícia Civil.
No ano de 2019, o laboratório de lavagem de dinheiro já foi integrado à PCES e em 2020 ocorreu a transferência do Núcleo de Repressão às Organizações Criminosas (Nuroc), da Sesp para a Polícia Civil. Nesse ano foi criado o Centro de Inteligência e Análise Telemática (Ciat), na estrutura organizacional da PCES, ligado diretamente ao gabinete do delegado-geral.
Em relação ao sistema da Plataforma de Comutação Digital foi detectada a necessidade de estruturação tecnológica robusta para que a Polícia Civil possa gerir a questão das interceptações telefônicas, estruturação essa que está em andamento, para que futuramente a ferramenta seja repassada à PCES. Porém, cabe ressaltar que para manter o nível de segurança exigido em uma atividade desta natureza, a Plataforma de Comutação Digital possui recursos que permitem completa compartimentação das informações, entre as unidades, de forma que apenas possuem acesso a determinada investigação os policiais que atuam naquele caso, de acordo com o previsto no mandado judicial.
São esses policiais que acompanham as interceptações telefônicas e produzem os relatórios circunstanciados exigidos pela Lei Nº 9.296/96, periodicamente remetidos ao Poder Judiciário, devidamente acompanhados das mídias (DVD) com o inteiro teor das ligações interceptadas. Ou seja, a função da Subsecretaria de Estado de Inteligência fica restrita à atividade meio (administrar a tecnologia disponível para essa atividade) e não inclui a atividade fim (acompanhamento das interceptações e investigação dos casos), que é de competência exclusiva das Autoridades Policiais que representaram judicialmente por essas medidas cautelares.
Cumpre salientar por fim, que nunca foi verificada qualquer ilegalidade praticada pela Subsecretaria de Estado de Inteligência. Também cabe destacar que, assim como o subsecretário, o gerente responsável pela operacionalização da plataforma é um Delegado da Polícia Civil do Espírito Santo. Além disso, todos os integrantes da Gerência de Inteligência são policiais dos quadros efetivos dos órgãos subordinados à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social.”
COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DO PIAUÍ
“A Secretaria Estadual de Segurança Pública tem adotado medidas concretas para atender à recomendação conjunta do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual do Piauí, tendo iniciado o processo de mudanças administrativas, dentre elas, a recente regulamentação pela Delegacia Geral de Polícia Civil ampliando o âmbito de atuação da Gerência de Inteligência da Polícia Civil.
A Secretaria de Segurança assim que recebeu a recomendação, solicitou ao Ministério Público Estadual que se manifestasse sobre o assunto, relatando ou apontando qualquer caso que tivesse ocorrido o uso indevido da atividade por parte do Serviço de Inteligência. O MPE se manifestou atestando que não existe nenhum caso que retrate o uso indevido deste aparato que seja de conhecimento da instituição. A Secretaria de Segurança reforça que sempre tratou o serviço de inteligência de forma técnica e em prol do serviço público.”
COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DE RONDÔNIA
“O Estado de Rondônia atendeu a recomendação do Ministério Público, e transferiu a administração do Sistema Guardião da Secretaria de Estado da Segurança, Defesa e Cidadania para a Polícia Civil em 10.06.2020. Quanto ao questionamento sobre a possibilidade de uso indevido do sistema, destaco que, independentemente do órgão que administre-o, o Sistema Guardião não permite a realização de interceptação telefônica sem autorização judicial.”