Não deu tempo para nada. Do jeito que estava, a família de garimpeiros que ocupava uma das balsas abandonadas na margem do Rio Madeira, na altura do município de Nova Olinda do Norte, largou tudo para trás e fugiu pelo mato com a roupa do corpo.
O Estadão esteve na balsa abandonada um dia depois da fuga. Os pertences deixados pelo chão comprovam que ali vivia e trabalhava uma família inteira, com uma criança. Na pressa por deixar tudo e escapar da fiscalização, um celular de capa rosa ficou para trás, caído no assoalho de madeira do andar de cima da balsa.
No espaço usado como dormitório, redes ficaram penduradas. Roupas e toalhas balançavam nos varais improvisados. A fuga ocorreu pouco antes do almoço. Sobre o fogão, uma panela de comida ainda estava cheia. No isopor, o gelo continuava bem conservado.
Uma agenda com anotações sobre pagamentos e contatos ficou perdida no meio da roupa jogada no chão. Ao lado, alguns brinquedos velhos e uma mamadeira. Na parede de um dos cômodos, um único adorno com uma pequena placa trazia a palavra “Fé”.
Em outro cômodo, um modem velho pendurado se prestava a alguma tentativa de acesso à internet em uma região onde comunicação é luxo. Era uma família garimpeira, como centenas de outras que, há décadas, mergulham na água turva do Madeira em busca de ouro.
A ideia de que o garimpo é um crime ambiental se diluiu na mente de muita gente que tenta a sorte nos rios da Amazônia há décadas. As dragas que sugam o rio geralmente não pertencem a quem está na operação – são bancadas por financiadores.
Paralelamente, autoridades também já identificaram a participação de criminosos ligados ao narcotráfico atuando conectados ao garimpo, mercado ilícito que se apropriou das rotas fluviais do Norte. Na ponta desse processo, porém, muitas vezes estão famílias tentando se virar para sobreviver.
ENGRENAGEM
Como um camelô que vende produtos clandestinos nas grandes cidades, essas famílias sabem que atuam numa atividade irregular, mas se apegam à necessidade de sobreviver e se negam a reconhecer que são peça de uma engrenagem nesta roda do crime que assola a Amazônia e avança de forma descontrolada em toda a região.
Como acontece nas águas do Tapajós e do Xingu, o garimpo é realidade há décadas ao longo do Rio Madeira. Nesta ocasião, porém, a exploração do ouro no leito do rio só chamou a atenção de autoridades dentro e fora do País pelo impacto de imagens que revelaram a audácia dos garimpeiros, agrupados numa marcha fluvial, uma cidade flutuante que serviu para mostrar o vigor da exploração ilegal do ouro no País.
Nas vilas ribeirinhas ao longo da orla do Madeira, em municípios como Autazes, Nova Olinda do Norte e Borba, muitas famílias construíram suas vidas em volta dessa atividade e não veem outra opção para seguir adiante. O cooperativismo e a regulamentação das atividades de extração são demandas antigas, mas que acabam perdidas em iniciativas locais, sem o poder de transformar a realidade caótica do comércio de ouro no País.
Em conversas com ribeirinhos e com garimpeiros, é comum ouvir a afirmação de que eles são apenas trabalhadores que atuam em uma atividade pesada e arriscada. Predomina a percepção de que não estariam cometendo crime nenhum, porque suas ações não teriam impacto no meio ambiente, mesmo após revolver todo leito do rio e filtrar sua água e terra, manipulando poeira de ouro presa nos tapetes das esteiras de madeira, para depois tratar tudo com mercúrio.
Na última semana, em reação à operação policial que se ensaiava para reprimir o crime na região, garimpeiros chegaram a trocar mensagens em tons de ameaça, esboçando que poderiam organizar uma suposta reação à polícia, com a formação de “paredões” e “tocaias” na floresta. O fato é que ninguém resistiu a qualquer ato de repreensão.
Aqueles que não fugiram a tempo acabaram por ser abordados pelos agentes da Operação Uiara, nome que tem origem no tupi e faz referência à “mãe d’ água”. Sabendo que famílias inteiras, muitas vezes, costumam ocupar as balsas, os agentes deixavam que retirassem seus pertences e partissem, para depois destruir o equipamento de garimpo.
LIBERADOS
“Há crianças, mulheres. Famílias inteiras. Ninguém aqui pretende usar da força ou causar qualquer revolta na população. Por isso, deixamos que retirem suas coisas pessoais e que saiam. Essas pessoas são identificadas, mas são liberadas”, disse o superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Leandro Almada.
O trabalho em família deve-se à necessidade de passar longos períodos no rio, sobre as balsas, que funcionam como verdadeiras casas para o garimpeiro. O funcionamento da draga usada para chupar o leito do rio precisa da participação de, no mínimo, três pessoas. Enquanto uma gira a manivela que sobe e desce a mangueira até o fundo da água, outra some rio adentro para direcionar o tubo em diferentes áreas – um mergulho que, normalmente, é feito sem nenhum tipo de equipamento de apoio. É na base da apneia mesmo. Uma terceira pessoa fiscaliza a chegada do material que é despejado na esteira e o funcionamento do motor que suga o que encontra pela frente.
PÓ DE OURO
Uma vez que o material é trazido à superfície, cai sobre uma esteira de madeira coberta com um tapete ralo. Ali, o pó do ouro é retido, por ser um metal mais pesado que os demais sedimentos, enquanto o resto volta para o rio. É um processo repetido à exaustão, até que depois aqueles tapetes são retirados e “batidos”, para soltar o ouro que ficou impregnado. A partir daí é que se usa o mercúrio, responsável pela separação final do metal nobre.
O trabalho prossegue durante todo o dia. Em situação precária, os garimpeiros passam meses viajando pelo rio, principalmente nos períodos de menos chuva, quando a água ainda não se adensou e é mais fácil chegar ao fundo.
Na semana passada, quando correu a informação de que alguém teria “bamburrado” no Madeira, na altura de Autazes, a corrida de garimpeiros se formou, atrás da sorte. A notícia era de que estavam tirando “um grama de ouro por hora”. Muitos não encontraram o que queriam. Tiveram os equipamentos apreendidos pela fiscalização e destruídos. Tudo foi queimado e deixado no local. Está, agora, no fundo do rio.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.