Crônica do Ataualpa: A convicção da mulher do piolho
Lembro o dia em que uma professora da escola primária, na qual eu estudava em Teresina, ao conversar com uma colega, disse: “ aquela menina é mais teimosa do que a mulher do piolho…”
Não conhecia a mulher do piolho, nem entendia o sentido dessa expressão. Ao voltar para casa, perguntei à minha mãe quem era a mulher do piolho. Primeiro ela riu, depois me contou a história da mulher que viu um piolho na camisa do marido.
Como se tratava de um senhor machista, não admitia ter piolho. Disse que o parasita que estava na roupa não era piolho, mas sim, uma formiga. De um lado, a mulher falava que era piolho; o marido negava e dizia que era formiga. Percebendo que a mulher não mudava de opinião, resolveu ameaçá-la, prometendo dar-lhe uma surra, caso não mudasse de ideia.
Diante da convicção com que a mulher afirmava e, por não admitir o fato de ter piolho, amarrou as mãos dela, pendurou-a na roldana do poço, começou a descê-la ameaçando afogá-la. E, à medida que descia a corda perguntava:
– Era formiga ou piolho?
– Piolho.
A mulher já com o corpo dentro d’água, não negava o que tinha visto. O marido desceu ainda mais a corda. Ficaram de fora somente as mãos. Mas, mesmo assim, sem poder falar, ela, com as unhas dos polegares, fazia um movimento como se estivesse matando piolho.
Essa história está inserida na cultura popular nordestina. A mulher do piolho virou exemplo de teimosia. Não se fala das agressividades do marido, nem da tentativa dele de querer esconder a verdade. Ela estava irredutível pela certeza de que o parasita que vira não era formiga. Essa convicção passou a ser vista como teimosia.
Mentiroso e teimoso, considero o homem que viu um monte de areia e saiu dizendo que era água. Um outro que tinha visto a mesma coisa, falou a verdade. E, para provar que estava certo, pegou um pouco da areia e jogou no teimoso que, sem reconhecer o erro, pulou para trás e disse:
– Não me molha…
O que se convencionou chamar de negacionismo segue por essa linha do não admitir o cientificamente comprovado. Hoje nos deparamos com pessoas, principalmente no mundo político, que tentam negar o óbvio. Diante de provas irrefutáveis, negam a própria assinatura em documentos bancários. É verdade que cabe ao acusador o ônus da prova. E, caso haja dúvida, que seja aplicado o princípio do “indubio pro reo” (que a dúvida favoreça o réu). Porém, diante da veracidade das provas, torna-se mais digno assumir os próprios erros, admitir o desconhecimento científico. Mas, para isso, é preciso hombridade.
Às vezes, tento entender a posição de pessoas que não assumem o que fazem. Talvez seja pelo medo de arcar com a responsabilidade dos próprios atos. Hoje essa farsa fica exposta em fakenews. Que exemplos essas “autoridades” deixam para a juventude? Para que desqualificar o conhecimento científico?…
É válido mencionar aqui o grande filósofo grego, Sócrates, que preferiu tomar cicuta a negar suas convicções. Foi coerente com o que acreditava. A ele, é atribuída a seguinte frase: “Só sei que nada sei, e o fato de saber isso, me coloca em vantagem sobre aqueles que acham que sabem alguma coisa”.
No livro “Fédon”, Platão, discípulo de Sócrates, transcreveu a última frase do mestre: “Críton, somos devedores de um galo a Asclépio; pois bem, pagai a minha dívida. Pensai nisso!”. Por essa ironia, é possível deduzir que esse filósofo morreu sem dinheiro, porém a sua história atravessa o tempo pela retidão da sua conduta. Que mérito tem aquele que não assume o que faz?
A mulher do piolho ficou como desobediente e teimosa. O marido dela deveria ser um desses “senhores” que tenta comprar até a verdade. E, quando não compra, tenta abafá-la, impondo o medo e o terror ou faz algum conchavo para que os fatos não se propaguem.
Galileu foi recriminado quando defendia a ideia do heliocentrismo no período medieval. Por não radicalizar, teve uma vida mais longa sem mudar o modo de pensar. E, por influência de amigos, conseguiu uma prisão domiciliar permanente, mas preservou a sua integridade.
– O mestre Ariano Suassuna passou a usar a mulher do piolho como símbolo da cultura brasileira.