• A lírica épica de Cláudio Guimarães dos Santos

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  • 31/10/2021 08:30
    Por Leandro Garcia, especial para AE / Estadão

    Vivemos na era das superficialidades, numa sociedade do espetáculo na qual a poesia se encontra, não raro, representada por criações medíocres, descartáveis e sem conteúdo.

    É nesse contexto problemático que se dá a corajosa publicação de Gaugamela, de Cláudio Guimarães dos Santos, pela Editora Francisco Alves, coletânea de poemas que nos obriga a (re)pensar a poesia brasileira contemporânea.

    Se uma das características do clássico é a permanência, a presente obra já nasce clássica, pois ela permanecerá pela alta qualidade estética dos seus poemas e pela profundidade das reflexões filosóficas que desperta. Isso contrasta, nitidamente, com a irrelevância dos modismos literários, tão comuns em nossos dias, e dos quais Cláudio passa longe, construindo sua refinada poética de maneira coerente ao longo das três coletâneas que publicou até agora: Definições Fundamentais (Nhambiquara, SP, 2014); Coleção de Epifanias (ed. bilíngue português-espanhol, Bohodón, Madri, 2017); Tempos Ocos (ed. bilíngue português-francês, Grácio, Coimbra, 2018).

    Sua escrita renova e subverte a própria noção de clássico, como também o fizeram Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e Augusto Frederico Schmidt. E ainda que a presença de referências positivas à herança europeia em obra de autor contemporâneo possa ser demonizada por alguns críticos inebriados com teorias decoloniais, não deixarei de afirmar que são os elementos clássicos – que não causam a Cláudio nenhuma vergonha e dos quais se vale com rara habilidade – que imprimem brilho incomum à sua obra.

    BUSCA PELO DESCONHECIDO. Outro aspecto essencial de sua poesia é a busca incessante e tensa pelo desconhecido, pelo inominável, pelo místico, pelas respostas às indagações incontornáveis sobre o mistério da existência e o ser/estar no mundo, num percurso apofático, como neste fragmento de O Céu de Deus:

    “Não se pode atingi-lo pelo ar nem pela água…/Estradas, planas ou íngremes, não conduzem ao Céu de Deus./Não adianta pôr-se de joelhos nem rastejar clamando salvação,/Que é sempre misteriosa/(…)O Céu de Deus é o reino da Criança Absoluta,/Que é livre porque é feliz,/Que escorrega nas dobras do improvável,/Que confunde as certezas,/Que embaralha as previsões -/E que, por isso, ri, gostosamente -,/Que entretece, com linhas coloridas,/A teia fractal do Tempo/Por onde o sonho da Existência escorre”.

    O poema que dá título à presente obra – Gaugamela – é caudaloso, complexo, narrativo, dramático, essencialmente épico. Nele, a presença da inspiração homérica é clara e benfazeja, bem como o são as heranças de Virgílio, Dante e Camões. Dele, destaco esses versos de notável sonoridade, ritmo e poder descritivo: “Canta, Deusa, com beleza/(Como se fosse possível)/As dores e os gritos de guerra/Que se ouviram em Gaugamela,/Os lampejos das espadas/No sol alto reluzindo,/A vertigem da vitória,/O abismo da derrota,/Os membros que se despregam,/A glória tão desejada,/As lanças que caligrafam/Delicados arabescos/Nos corpos que jazem nus,/O peso quente do dia/Descorado pelo pânico,/(…)A catábase das almas,/Os cavalos sem destino/Com as entranhas derramadas,/O silvo certeiro das flechas/Que cravam peitos exaustos,/O sangue que empapa tudo/E tinge de rubro o cenário/No qual Áries, inflamado,/Nu e pleno como um deus,/Entoa seu canto rude,/Pisando no barro seco/Dos nacos das carnes mortas/Que, enfim, ao pó retornam”.

    O QUE DEVE SER DITO. É um prazer deleitar-se com a precisão dos versos que compõem cada poema dessa coletânea – versos que poderiam ser considerados poemas em si mesmos -, nos quais se encaixam, harmoniosamente, os planos da forma e do conteúdo, exprimindo o que deve ser dito de maneira clara e precisa.

    Nosso poeta se insere na linhagem dos nômades, dos que transitam entre mundos reais e imaginários. Tendo por profissão (circunstancial) a diplomacia e mudando de país continuamente, ele é obrigado a pensar o Brasil a distância e a construir sua obra alhures, alargando a noção de espaço nacional e redimensionando a identidade da cultura brasileira. Dá-se, com ele, o que ocorreu com o excelente Murilo Mendes, cuja obra foi, por muito tempo, mais conhecida no exterior.

    Sem publicar no Brasil desde 2014, Cláudio faz, com Gaugamela, uma reentrada auspiciosa em nosso ambiente literário, desestabilizando a ideia de poesia que é ensinada nas escolas e nas universidades – a poesia das “neomodas” e dos experimentalismos -, assim como, em anos recentes, contribuiu para a internacionalização imprescindível da nossa literatura com a difusão de sua densa obra em outras línguas e países.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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