Movimento solarpunk elabora narrativas em um futuro movido a energias renováveis
1984, Fahrenheit 451, O Conto da Aia e muitas outras obras clássicas e contemporâneas compartilham uma característica: retratam sociedades disfuncionais ao extremo distorcendo algum aspecto negativo de nossa realidade, como o autoritarismo, o anti-intelectualismo ou a misoginia. Essas narrativas são as chamadas distopias e, nos últimos anos, não há uma semana em que livros desse gênero não estejam entre os mais vendidos no Brasil e em outros países.
No entanto, uma nova tendência literária parece ganhar tração depois de o mundo ter mergulhado em um cenário digno de distopia, com a ascensão de líderes extremistas e o surgimento da pandemia de covid-19. Em vez de imaginar um cenário horrível, alguns escritores têm tentado se rebelar ao inventar mundos otimistas. Um novo subgênero vem se destacando nessa seara: o solarpunk, cujas tramas se passam em futuros sustentáveis e movidos a energias renováveis. E o Brasil é protagonista nessa história.
O solarpunk surgiu na literatura em uma coletânea de contos brasileira publicada em 2012 pela editora Draco e organizada pelo premiado escritor de ficção científica Gerson Lodi-Ribeiro. A obra já foi traduzido para o inglês e o italiano e tem influenciado escritores em diversos países.
SATURAÇÃO. “O leitor está um pouco exausto da enxurrada de narrativas distópicas”, afirma Gerson ao Estadão. “A gente já está vivendo um cenário distópico. A questão do negacionismo, não só com a pandemia, mas com o aquecimento global e a própria democracia. O público anda buscando leituras com enredos em cenários mais otimistas, sem tentar imitar as utopias tediosas de séculos passados, já que toda trama legal tem de ter dilemas.”
O escritor, jornalista e divulgador científico Carlos Orsi, que abre a coletânea Solarpunk com um intrigante conto policialesco, concorda que, apesar de o gênero propor futuros sustentáveis e otimistas, suas narrativas também oferecem conflitos, como toda boa história. “Tudo gira em torno de reconhecer que nenhum futuro jamais será perfeito, logo o conflito sempre estará presente”, explica Orsi. “Mesmo em futuros em que ‘tudo dá certo’ haverá pessoas querendo ter o que não podem, sofrendo ou praticando injustiças.”
Para Gerson, antes de o solarpunk surgir enquanto gênero, autores de peso como Octavia Butler e Kim Stanley Robinson já propunham experiências literárias nessa linha, algo inevitável de acordo com ele. “Se um escritor admite, num cenário plausível, que a civilização humana tecnológica sobreviva nos próximos 50, 100 anos, ele tem de admitir um cenário mais otimista do que o atual, porque se continuarmos aquecendo a atmosfera, com o nível de desigualdade e negacionismo que temos, não vamos sobreviver.”
Alexander Meireles da Silva, professor de Literatura na Universidade Federal de Catalão e apresentador do canal Fantasticursos, onde fala sobre literatura fantástica no YouTube, destaca o protagonismo do Brasil no surgimento do solarpunk em nível global. “Sempre tivemos uma produção intensa de ficção científica desde o século 19, mas o solarpunk captura algo bem brasileiro, que é a própria terra, uma particularidade do nosso país como matéria-prima para a narrativa. Num momento em que se está discutindo um futuro sustentável, não porque se quer, mas porque se precisa, você olha para um país que tem sol, energia eólica, território imenso para fazer biocombustível, e esse cenário serve de matéria-prima para várias narrativas que pensam alternativas sustentáveis.”
Ele explica que, apesar dessa quebra de paradigma em relação à distopia, o solarpunk “não é uma panfletagem de sustentabilidade, também discute questões do corpo, do pós-humano, de para onde a gente vai. Tem histórias de pessoas que modificam seu corpo para poder colonizar Marte, que optam por se fundir com plantas, é uma discussão que vai além da energia renovável”. Otimismo à parte, será que o solarpunk pode ter um impacto na vida real? Para Orsi, sim: “Mostrando que a realidade social em que vivemos não está gravada em pedra, que versões alternativas ou aperfeiçoadas são concebíveis”. Talvez por isso o solarpunk tenha, no Brasil, ajudado a moldar o afrofuturismo e o amazofuturismo, duas vertentes essencialmente nacionais.
Alexander acrescenta: “A principal função da literatura é refletir sobre os rumos da sociedade. A distopia sempre se colocou como reflexo da sociedade. Ray Bradbury não escrevia para prever o futuro, mas sim para evitá-lo”. Para o professor, não é de hoje que a literatura especulativa tenta influenciar a sociedade, nem sempre com sucesso. “Frankenstein, de 1818, já tinha alertado para os rumos da revolução industrial. Ninguém ouviu a Mary Shelley e o século 19 culminou na deterioração das condições de trabalho, saúde, qualidade de vida.”
“Acho que já passamos tempo suficiente mostrando para as pessoas como tudo pode dar errado”, diz Orsi. “É hora de pensar um pouco em como as coisas poderiam dar certo.”
EXPERIÊNCIA. O Estadão pediu a Gerson, especialista em solarpunk, que fizesse um breve conto distópico, e a Natalia Borges Polesso, autora da festejada distopia A Extinção das Abelhas (Companhia das Letras, 2021), que experimentasse a linguagem do solarpunk. Confira o resultado ao lado. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.