• Através do espelho

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  • 24/10/2021 08:00
    Por Ataualpa Filho

    “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. (…) Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.”

    Mais uma vez venho por aqui via Machado de Assis, pois, nessa semana que passou, tive que trabalhar com o conto “O Espelho”. E, como já estava com a mão na massa, aproveitei a oportunidade para compartilhar essa reflexão sobre as duas almas a que o personagem Jacobina faz referência no citado conto. Mas antes quero dizer que esse personagem já me incomodou bastante na juventude, no período em que cursei o antigo científico (hoje Ensino Médio) no Colégio Pedro II, no Rio. Raro é o estudante do Ciclo Básico que não tenha se deparado com os contos machadianos: “O Alienista”, “A Cartomante”, “Teoria do Medalhão”, “Missa do Galo”…

    Hoje entendo melhor o Jacobina. E cada vez mais me certifico que o mestre Machado delineou perfeitamente o comportamento humano em suas obras. Esse personagem sempre me fazia lembrar o que, em Teresina, entre os colegas, chamávamos de “fobista”. Para nós, fobar era pior do que mentir, pois o fobista, além de mentir, tenta projetar uma falsa imagem de si, com o objetivo de impressionar e tirar vantagens em benefício próprio. Sobre os fobistas, era comum ouvir: “esse cara só quer ser…”

    O meu equívoco na juventude foi interpretar Jacobina como um fobista: “Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. (…) O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.”

    Pelo posto que passou a ocupar, o “Joãozinho” como era tratado por parentes e amigos, passou a ser o “senhor alferes”. Ninguém mais o via como um cidadão comum, mas sim pelo status da patente. Por isso é importante saber em que espelho está sendo projetada a nossa imagem.

    A mediocridade tende a ser movida por interesses. A manipulação da vaidade pelos falsos elogios é constante. É preciso manter os pés no chão, não se distanciar da humildade, não permitir que o sucesso e a fama subam à cabeça, não se deslumbrar com a “civilização do espetáculo”. E assim, tornar-se um personagem a iludir-se.

    Hoje o chamado marketing pessoal tem sido usado com o intuito de projetar imagens em um mundo que se alimenta de aparência, porém vazio de essência. O parecer nunca vai substituir o ser, uma vez que não tem sustentação na verdade.

    O fobismo ainda me incomoda muito, porém o tempo me vez compreender as ilhas das fantasias. É o mestre Machado quem nos diz em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”: “antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.” Porém as desilusões, as decepções têm um preço árduo. A inverdade atualmente se propaga com facilidade pelas redes sociais. Que mérito há em ter uma ascensão social pelas falcatruas?

    A ideia de que “os fins justificam os meios”, comumente atribuída a Nicolau Maquiavel, mas é do poeta romano Públio Ovídeo Naso, expressa na obra “Heroides”, não pode ser usada para respaldar a desonestidade, a falta de ética e a violência. Como também não pode ser usada para justificar a venda da alma com o propósito de obter fama e sucesso.

    O personagem Fausto de J.W. Goethe também vive o dilema entre duas almas: “No meu corpo há duas almas em competição,/ anseia cada qual da outra se apartar./ Uma rude me arrasta aos prazeres da terra,/ e se apega a este mundo, anseios redobrados;/ outra ascende nos ares; nos espaços erra,/ aspirações à vida eterna e a seus antepassados.”

    A alma rude que se arrasta pelos prazeres mundanos não pode suplantar a que busca a eternidade, por isso que a humildade e o desapego estão presentes na consciência de quem olha para dentro de si e encontra a paz.

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