Bienal para além de tudo que se pode ver
Acabo de vir da Bienal “Faz escuro, mas eu canto”. Talvez, a melhor das que vi. E por quê?
1. A solução arquitetônica
Estruturar a área interna do prédio com paredes de plexiglass, tecido de juta ou madeira (como se fossem caixotes de transporte) terminou por criar “microclimas”, em que conjuntos de obras reunidas passam a delimitar percepções. Delimitar é ampliar: “Amor é o que se aprende no limite”, nos ensina Drummond. Assim, a interferência no prédio icônico de Niemeyer foi mais do que bem-vinda, a começar, logo à entrada, pela deliciosa escada curvilínea – bem ao gosto do arquiteto modernista – escondida” atrás de uma parede de juta, escada esta que nos conduz ao mezanino que sempre esteve ilhado” nas bienais anteriores.
2. O hábitat das salas refrigeradas
É nelas que residem as obras de Antonio Dias, Lygia Pape e Lasar Segall. O acerto expográfico das escolhas revolve camadas conservadas de tempo, a começar pelas obras “ambientais” de Segall em pinturas, desenhos e guaches: uma descoberta. Segue-se o diálogo dos Amazoninos e Mantos Tupinambás de Lygia Pape – grandes estruturas em aço pintados de vermelhos, verdes, amarelos – com os quadros de plumas de urubu-rei, arara vermelha de Daiara Tukano, diálogo observado, à respeitosa distância, pelas pinturas de Morandi. E aí reside o belo: este contraponto instintivo entre os Morandi – xícaras e garrafas como se esculturas fossem, envoltas em pinceladas flutuantes, embaçadas, um grito de silêncio na névoa – e as peças majestosas de Lygia que explodem para fora, berrando, urrando e alertando sobre o futuro do fogo desolador. Já a sala de Antonio Dias é, toda ela, uma constelação, título desta série de obras do início dos anos 70, uma via láctea às avessas, telas profundamente escuras: a luz vem das palavras. Ao centro, a grande pintura com as letras DOG e GOD parece sintetizar esta distância entre o que há de mais comezinho no que é considerado terreno (um cão) e o, aparentemente, extraterreno (algum Deus).
3. A âncora do Arjan
Eis aí um fato novo que cria um desalinhamento na estrutura do prédio e o perpassa, repleto de significados, com cordas que saem de uma boca negra no teto branco, se enroscam em pilotis pintados de branco e se “ancoram” à beira da passarela: bela!
4. Palavras
Esta é a grande Bienal delas. São muito bem escritos os textos que encontramos em totens, a cada quantas passadas, totens que funcionam como marcos de conteúdos (os “enunciados”). Claros, concisos, sem vezos políticos, explicativos, circunstanciados na história e nos fatos, não na sua interpretação imediata. Há vídeos, imagine!, só compostos por palavras. E há cartas, muitas, como a correspondência dos intelectuais Artaud/Glissant ou as do antropólogo Joel Rufino dos Santos, escritas de dentro da prisão no recente período militar, e encaminhadas, em letra miúda e delicados desenhos coloridos, a seu filho. Em contraponto, as cartas com letras agigantadas e prenhes de sentimentos sertanejos de Juraci Dórea: impressionantes estandartes de fala.
5. Lugar de fala
O tema, que se tornou predominante (demorou!), passa de forma adequada nas tessituras das obras dos artistas representados. Tudo está ali presente, vibrátil, sem ser óbvio, em forma de contraponto entre obras, em gritos agudos que saem de caixas sonoras (às vezes, reverberando de forma excessiva na parca acústica do prédio).
6. Vídeos
São muitos, mas não deixam de ser palavras escritas em forma de imagem, garrafas lançadas ao mar com mensagem dentro. O piso do prédio serve de base a um painel que emerge com a projeção de fragmentos de um filme de Antunes Filho com o ator Zózimo Bubul: uma boa solução expográfica de luz, intensa, que brota do chão escuro. Faz escuro, mas eu vejo…
7. Brasileiríssima
Esta é a instalação Menas, obra de Alice Shintani, em papéis sanfonados com guache ou bordado que se abrem sobre caixas, como se numa feira livre estivessem. Gosto de ir a feiras e caminhar de uma ponta a outra, permitindo que frutas e legumes me olhem; só após, retorno, caçando aquelas que foram capazes de me seduzir: o mesmo sentimento me encantou em Menas. Aliás, é assim que uma Bienal pode ser percorrida: permitir a obras de arte nos seduzir, encantar, mesmerizar… como serpentes prontas ao bote!
8. Caribe e Amazônia
Sanbras é uma menina que deseja fugir da sociedade para criar um pequeno ecossistema ocupado principalmente por crianças (segundo conto do autor caribenho Chris Cyrill); o conto deu origem às imensas pinturas de Kelly Sinnapah Mary, de Guadalupe. A menina transparece em corpo, roupa, terra, tudo feito da mesma tinta, da mesma cor, da mesma matéria pictórica, da mesma pincelada: retrato mais que contemporâneo de uma sociedade em que o homem volta a ser o centro do Universo, só que de forma ética e em fusão com a natureza. Esta mesma natureza que surge derretida nas obras do equatoriano Adrian Balseca, artista que utiliza as matérias-primas da Amazônia, no caso, as ligadas ao ciclo da borracha. O artista produziu uma série de fragmentos de pneus em borracha de cor natural, bege, aderidos à parede, exibindo, de maneira frontal, as ranhuras que possuem, ranhuras que, paradoxalmente, lembram desenhos indígenas de etnias amazônicas.
9. Ao invés de concentração, dispersão
Acertada a proposta expográfica de distribuir obras do mesmo artista ao longo do percurso, o que produz novas surpresas no reencontro, como no caso das pinturas de Eleonore Koch ou nos desenhos e estandartes tecidos de Noa Eshkol. Já os vídeos da sérvia Ana Adamovic, presentes numa ponta e outra da exposição, são apaixonantes. Num deles, Ana descobriu no acervo de um museu em Belgrado, presentes recebidos pelo Marechal Tito, ditador da extinta Iugoslávia; entre eles, um álbum produzido pelo Instituto de Educação de Crianças Surdas, de Zagreb, com um coro infantil que vocaliza canções que elas mesmo não podem ouvir. Ana reinterpretou estas canções em língua de sinais. O vídeo é de uma poética fundamental para a compreensão do outro (a pessoa portadora de deficiência auditiva usa a linguagem da poética física!).
10. ‘João e o Pé de Feijão’
Em meio ao terceiro andar, parece que a luz fura o teto e deixa germinar folhas até o céu, como na fábula infantil. A obra da peruana Ximena Garrido-Lecca é uma síntese do porquê desta mostra: a celebração da escrita. Tudo é escrita, a começar pela pintura rupestre, certo? Há uma brotação viva, ao lado de uma mesa que sustenta uma antiga caixa de tipos (caixa de letras em chumbo, da antiga tipografia) repleta de feijões brancos com manchas em preto e seus significados escritos. Uma tabuleta, ao chão, traz a narrativa: “Insurgências botânicas é uma instalação com estrutura hidropônica em que são plantadas mudas de favas da espécie Phaseolus Lunatus, numa reativação simbólica do sistema de comunicação da cultura moche, uma civilização peruana pré-incaica, que desenvolveu complexos sistemas de irrigação e que, supostamente, valia-se das manchas presentes nessas favas como signos para uma escrita ideogramática. Com sua ênfase no processo ininterrupto de transformação de tudo que é vivo (de uma planta a uma cultura), no âmbito da 34ª Bienal esta obra passou a simbolizar a estratégia cultural de conceber a mostra como processo e não como algo cristalizado ou fixo.” Valeu!
Bienal, Museu, qualquer exposição é lugar para se entrar de corpo inteiro, tridimensionalmente, com todos os sentidos despertos. Cada obra de arte nos convida a olhá-la, a partilhar dela, a se entregar a ela, criando vazios entre o olhar que vê e o objeto que é visto. Um vazio de silêncio. Um vazio que amplia horizontes de percepção. Creio que esta Bienal, com curadoria de Jacopo Visconti, Paulo Miyada e equipe, sob o olhar do Zé Olympio, atingiu este objetivo, abrangendo do olhar sempre vanguardista de Regina Silveira à presença da, antes, desconhecida, arte indígena de Jader Eisbell.
À saída, passei na Livraria da Travessa, que fez uma correta curadoria de livros afins aos temas propostos pela Bienal, onde adquiri o catálogo da mostra, graficamente, desordenado (talvez, uma obra em si mesmo?), distinta do bem legível projeto de arquitetura e expografia. Uma conexão de poucos passos me levou à nova porta de entrada do vizinho Museu de Arte Moderna de São Paulo. Ali, uma exposição, com curadoria de Aracy Amaral, mostra que, para além dos negacionismos ou mecanismos políticos de sempre, houve e há um povo, brasileiro e mestiço, que ressurgiu, já se vai um século, nas telas de Tarsila, Di, Portinari. Indígenas, negros, pardos, cafuzos, mamelucos, gente deserdada e ultrajada ainda hoje, “gente feita de coisa desfeita”, mas que a arte teima em reconhecer e engrandecer, exatamente como no propósito desta Bienal.
*É EDITOR E CURADOR
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.