‘Ricardo III’ ganha versão rock ‘n’ roll em ‘Meu Reino Por um Cavalo’
As peças de William Shakespeare (1564-1616), além de universais, trazem histórias que podem ser admiradas por espectadores de qualquer idade – mesmo aqueles espetáculos que, à primeira vista, são marcados por violência e sangue. É o caso de Ricardo III que, nas mãos de Angelo Brandini, da Cia Vagalum Tum Tum, ganhou uma versão com estética rock’n’roll, Meu Reino por um Cavalo, que estreia neste sábado, 9, no Teatro do Sesi.
Escrita por Shakespeare entre 1592 e 1593, Ricardo III tem um protagonista emocionalmente complexo. Depois de auxiliar seu irmão mais velho, Eduardo, a assumir o comando da Inglaterra, Ricardo (aqui vivido por Edgar Bustamante), homem marcado por uma deformidade física, fomenta conspirações, alia-se a parceiros a quem trai sem culpa, ordena a morte de todos os que podem impedir sua chegada ao poder. Shakespeare criou o maior monstro do teatro que, curiosamente, é um dos mais amados.
Para o título de sua adaptação, Brandini pinçou uma das mais famosas frases do texto (e de Shakespeare), quando Ricardo, diante da iminente derrota, busca desesperado um cavalo para a fuga, único bem que então lhe interessa para salvar a vida.
Para a maioria dos estudiosos, Ricardo é a definitiva caracterização da ambição, da completa falta de escrúpulos e da indiferença pelo sofrimento alheio. O mal personificado na figura odiosa de um homem capaz de tudo. Mas, antes de ser macabra ou pessimista, a peça permite – ao representar com imensa ironia a encarnação do mal – a possibilidade de se refletir sobre os tempos atuais.
Brandini e sua companhia entendem do repertório shakespeariano – esta é a sétima peça do bardo que eles adaptam ao longo de 20 anos, período em que se especializaram em desenvolver técnicas, especialmente as que se aproximam dos movimentos corporais que passeiam entre o acrobático circense aliado ao jogo das máscaras, à música e ao canto.
Assim, Meu Reino por um Cavalo se revela um musical em que o elenco se apresenta também como uma banda, alternando interpretações cênicas com musicais. E as mortes que surgem na trama original de Shakespeare são aqui retrabalhadas e ganham uma curiosa ressignificação: os falecidos se transformam em quadros de parede, retratos compostos ou individuais, mas não abandonam a cena, fazendo parte da trama até o final da história.
“A morte sempre foi um tabu nos espetáculos para crianças”, observa Brandini. “Como sempre trabalho com os dramas e tragédias de Shakespeare, é inevitável tratar desse tema. Nos meus textos, que são escritos com o olhar do palhaço, já que sou um deles, a morte sempre vem de uma forma leve e divertida. Não é raro ver as crianças torcendo para alguém morrer nas minhas peças. Sempre procuro uma forma inusitada de apresentar a morte e dessa vez não é diferente, mas vou evitar o spoiler.”
O inglês supera os demais dramaturgos porque sua imaginação era mais rica do que a de todos de sua época e cobria uma gama mais vasta de experiências. Suas peças são, ao mesmo tempo, as mais naturalistas e as mais poéticas já escritas. Assim, assumir a tarefa de recriá-las, mesmo que com um verniz contemporâneo, exige uma boa dose de ousadia de seu autor.
Para isso, é essencial o trabalho em grupo, com colaborações como a vista no figurino assinado pela atriz Christiane Galvan, também fundadora da companhia e aqui intérprete de Margareth, que partiu de referências do período elisabetano (justamente o vivido por Shakespeare) para incluir detalhes das roupas de palhaços, artistas de rua e bobos da corte, o que lhe garante uma agradável atemporalidade.
Já a trilha sonora é assinada por André Abujamra, autor de músicas “poéticas e tortas, no sentido de ter compassos diferentes, com sons que não são usuais para o ouvido”, como disse ele no material de divulgação da peça. Abujamra conta que se inspirou nas canções que ouviu em recente viagem à Turquia. “Eles têm uma música forte, esquisita, meio estranha, e, como Ricardo III é um cara, digamos, torto, resolvi fazer uma música também torta.”
“Todas as peças de Shakespeare são atuais, por isso são clássicas”, atesta Brandini. “Mas Ricardo III vem como uma luva para os dias que estamos vivendo. Não foi uma escolha pensada para traçar o paralelo com os dias atuais, já que trabalho nesta adaptação há pelo menos cinco anos. Mas essa é a força e a mágica de Shakespeare e do teatro.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.