‘Meditar ajuda a não nos levarmos tão a sério’
Padre e discípulo zen, Pablo d’Ors virou escritor best-seller na Espanha há uma década com um livro breve, mas profundo, sobre sua relação com a meditação. Biografia do Silêncio, que chega agora ao País, sugere que a partir de algo simples como sentar, respirar e calar é possível começar uma transformação interior. É um livro sobre meditação, e como meditação, para o autor, é vida, este é um livro sobre um novo modo de estar no mundo.
“O silêncio é só o contexto que possibilita todo o resto”, ele escreve. Na obra, d’Ors fala sobre os desafios do começo, como a descoberta de que pode ser insuportável estarmos sozinhos conosco, a dor no joelho, o pensamento. É preciso, como ele diz, perseverar e esperar o lodo assentar. E então os resultados começam a aparecer.
O autor defende que a meditação ajuda no processo de autoconhecimento, nos reconcilia com o que somos e ajuda a aceitar a vida como ela é. A meditação nos concentra e nos devolve à casa. Meditando, nos aprofundamos na nossa identidade, descobrimos a paz e a confiança. Aprendemos a estar no presente e entendemos que nós e o mundo somos a mesma coisa – e daí nascem a compaixão e a humildade, uma atenção às necessidades dos outros, a abertura à diversidade, o apreço à natureza e uma visão de mundo mais global.
“Meditar ajuda a não nos levarmos tão a sério”, ele também acredita.
Aos 58 anos, Pablo d’Ors, fundador da rede de meditação Amigos do Deserto e do Tabor, conversou com o Estadão por e-mail sobre seu livro.
O método parece simples: sentar, respirar, calar. Mas como ter algum êxito num mundo tão barulhento, em tempos nebulosos? Ou numa dimensão mais cotidiana: com a construção ao lado, com os filhos chamando, o trabalho, a tecnologia, as redes sociais. Como começar a se desconectar desse mundo para tentar alcançar esse silêncio interior?
O método que ofereço para aprender a meditar é simples: basta se sentar com as costas retas, ficar quieto, recitar uma palavra sagrada – por exemplo, Maranathá – no ritmo da sua respiração, focando sua atenção no centro das palmas das mãos, que devem estar interligadas, seja no colo ou na altura do coração. Isso é tudo. Você tem sucesso perseverando no fracasso. Não se trata de mudar sua vida, não há nada a mudar. Basta dedicar 25 minutos por dia a essa prática e a vida muda sem que a gente perceba. O que acontece conosco é que, no fundo, não queremos mudar.
Fala-se hoje, depois do coronavírus, em uma epidemia de saúde mental. A pandemia nos desestabilizou. Vivemos um medo constante, assistimos à morte de pessoas queridas e de estranhos. Há uma sensação de desamparo generalizada. Por outro lado, ela também provocou mudanças de hábitos. Como o senhor vê esse momento de ruptura? E como a prática da meditação poderia nos levar a algum lugar novo, nos ajudando individualmente para que sejamos, em alguma medida, também agentes de uma mudança social – para que, então, algo novo possa surgir?
Esta pandemia nos enviou uma mensagem ética e uma mensagem mística. A ética nos diz que temos que mudar nossas vidas: que não podemos continuar viajando feito loucos, consumindo sem parar, desperdiçando os recursos do planeta. A mística nos diz que somos todos um, que estamos interligados. Esta descoberta, em nível planetário, é nova na história da humanidade, pois nunca vivemos uma crise tão global. Vivi esta situação crítica como qualquer outra pessoa: com incerteza, ou seja, com medo, preocupação, ansiedade. Mas também com esperança. A esperança não é mero otimismo. A esperança é uma virtude, algo que pode ser cultivado. Todos os meus esforços visam mostrar que somos responsáveis por como nos sentimos e, em última instância, pelo que nos acontece. Por outro lado, nenhuma mudança social que não passe por mudança pessoal é sólida e confiável. Seja você a mudança que espera do mundo.
Como o senhor diz, meditar é pular de cabeça na realidade, é a arte da rendição e o caminho para nos abrirmos para a dor. Por que isso é bom, e necessário?
A realidade é muito mais sábia do que qualquer ideia que possamos ter dela, por mais bonita que nos pareça. Tudo de grande e belo que esta vida oferece, como responder a uma vocação, ter um filho, escrever um livro, escalar uma montanha, amar outro ser humano, implica uma certa dor. Nada é feito de forma simples e apenas com prazer. Se você elimina a dor, elimina a vida. Cada vez que você se protege para não sofrer, você se impede de viver. Muito mais do que a própria dor, o que nos destrói é a nossa resistência a ela. “Não resistir ao mal” (Mateus 5:39) é um dos ensinamentos menos compreendidos de Jesus de Nazaré e certamente um dos mais decisivos.
O senhor escreve que estamos vivendo, sim, mas que muito frequentemente estamos morrendo. Que pensamos demais e, por isso, agimos pouco. Que buscamos a paralisia, ou que seguimos adiante por inércia. Que buscamos empregos e companheiros que nos façam sentir seguros, ideias firmes e claras, partidos conservadores. O que precisamos aprender para começar a viver de fato?
As pessoas não são divididas em crentes ou não crentes, nem em negros ou brancos, bons ou maus, inteligentes ou estúpidos, mas sim em vivos e mortos, acordados ou dormindo. O que temos de fazer é acordar, perceber, desfrutar. Desfrutar é comungar com o que existe. Não estamos aproveitando, não estamos entregues às coisas, situações ou pessoas; estamos bastante divididos, quebrados, fragmentados. O grande desafio é a unidade, a harmonia, a comunhão – há muitas palavras para dizer a mesma coisa. Em vez de nos ajudar a entrar na realidade, o pensamento muitas vezes nos separa dela e nos paralisa permanentemente. Tudo bem pensar, mas não sem antes contemplar, receber, acolher. Primeiro você tem de se deixar afetar pelo que a vida nos oferece, e só então pensar nisso. Não sabemos perceber, somos muito mentais. A razão? Temos medo, desconfiamos. Se não nos tornarmos crianças, se não entrarmos numa segunda inocência, perderemos o tesouro que nos foi dado.
Buscar o silêncio interior, como coloca, é algo para a maturidade. Existe alguma coisa nessa linha que podemos ensinar às crianças desde pequenas?
As crianças precisam ser deixadas um pouco em paz e também que deixemos elas serem crianças: que brinquem, se aborreçam, protestem, se zanguem. O melhor serviço que podemos prestar às crianças é ser quem temos de ser. Ser você mesmo é a melhor coisa que você pode fazer pelos outros. Se você deseja que seu filho ore ou medite, por exemplo, ore ou medite e o resto virá como consequência.
Por falar em infância, o senhor escreve algo bonito em Biografia do Silêncio: “A meditação ajuda a recuperar a infância perdida”.
Quando éramos crianças, não tínhamos preconceitos. Isso nos fazia curtir uma viagem de carro, um dia na praia, um bolo de chocolate, uma formiguinha andando no chão. Não tínhamos pressão por desempenho. A vida não era para produzir, não era para alguma coisa. Era vida, sem mais. O ser não era contaminado pelo poder, pelo ter ou o fingir. Não se trata de, agora, como adultos, recuperarmos a ingenuidade infantil, mas sim de uma espécie de ingenuidade lúcida: a lucidez de quem já viveu e retorna ao elementar, sabendo que é aí que o essencial se esconde.
Precisamos aprender a sorrir mais, a rir de nós e a rir à toa?
Sem dúvida. Tudo seria muito melhor para nós se ríssemos mais, principalmente de nós mesmos. Às vezes, nossa vida assume dimensões trágicas, muitas vezes dramáticas, mas quase sempre cômicas. Ver o lado engraçado das coisas pelas quais temos de passar é o princípio da sabedoria. Ou o final. Para mim, há duas coisas que me aliviam da gravidade com que a vida às vezes se apresenta a nós: religião e humor. Precisamos de mais leveza, o que não quer dizer que não existam momentos que também nos exigem atitudes sérias e até mesmo drásticas. Quando rimos, a mente perde o controle e o corpo se liberta. Isso é bom para nós na maioria das vezes.
Qual foi a principal lição que a meditação te ensinou?
Que não devo escapar da vida. Que é na vida que Deus me espera. A meditação me ensinou e continua a me ensinar a conviver com quem eu sou, com quem me tornei.
O que descobriremos quando formos, enfim, capazes de ouvir o silêncio?
Que o silêncio não é nada e é tudo. Que somos espaço, ou seja, pura possibilidade. Que só nesse espaço ressoa a voz da sua consciência. Aquela voz que lhe diz que você pode confiar que todas as coisas conspiram para que você seja quem foi chamado a ser.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.