Tony Ramos relembra ‘Pai Herói’, 1ª novela de Janete Clair a chegar ao streaming
O projeto de resgate de grandes telenovelas do Globoplay se iniciou há mais de um ano e já colocou quase 150 títulos à disposição dos fãs do gênero no streaming. Entretanto, faltava uma convidada especial para essa festa. Ou melhor, a anfitriã. Mas ela chegou. A partir desta segunda-feira, 27, Pai Herói, escrita por Janete Clair (1925-1983) em 1979, entra para o catálogo da plataforma. É a primeira novela da autora a chegar ao Globoplay. Janete é considerada por muitos a maior autora brasileira de telenovelas. Chamada de “maga das oito”, por ocupar a faixa mais nobre da TV, sempre com muito sucesso.
Do poeta Carlos Drummond de Andrade, ela ganhou o título de “usineira dos sonhos”, em uma coluna que escreveu no Jornal do Brasil, após o capítulo final de outro clássico que criou, O Astro, de 1977. Nele, Janete mobilizou o País com o mistério sobre “quem matou Salomão Hayalla?”.
Pai Herói contou com nomes como Tony Ramos, Glória Menezes, Paulo Autran, Elizabeth Savalla, Rosamaria Murtinho, Carlos Zara, Maria Fernanda, Lélia Abramo e Dionísio Azevedo no elenco. A história girava em torno de André Cajarana, interpretado por Tony, um jovem que tentava a todo custo provar a inocência do pai falecido.
Para isso, tinha que enfrentar o poderoso Bruno Baldaracci, personagem vivido por Paulo Autran em sua primeira novela diária, uma espécie de mafioso – atualmente, um miliciano – da Baixada Fluminense.
Em entrevista por telefone ao Estadão, Tony Ramos relembra seu trabalho em Pai Herói e em outras duas outras novelas da autora – a quem ele chama carinhosamente de “dona Janete” -, O Astro e Selva de Pedra, esta última, um remake exibido em 1986, após a morte de sua criadora.
Aos 73 anos de idade e 57 de carreira – cotidiana e ininterruptamente, como ele diz -, o ator também conta histórias de bastidores, fala sobre seu processo de análise de uma personagem e diz que Chay Suede seria um ator ideal para uma terceira versão de Selva de Pedra.
Queria que você contasse, talvez a geração atual não tenha essa compreensão, o que era ser escalado para ser protagonista de uma novela de Janete Clair?
Pois é, tenho um neto de 17 anos, outro de 21. Óbvio que eles não têm essa noção. Quer dizer, têm porque o avô fala muito sobre como era no passado, dá essa referência. Também não podemos querer novas gerações sabendo de tudo sobre televisão. É diferente da cultura norte-americana, na qual eles têm vários museus da televisão. Em Nova York, por exemplo, há um absolutamente fascinante.
Comecei com TV ao vivo. Pude entender o que era a televisão. Hoje, temos novas ferramentas. Em um telefone celular – eu, particularmente, não gosto de assistir em tela pequena -, você tem a opção de ver uma novela ou série enquanto está esperando o médico, um avião, um ônibus. É uma evolução. Quando você tinha só a TV aberta, o rádio e o cinema, uma novela como Pai Herói, de enorme sucesso, assim como foi a anterior, O Astro, que eu também fiz e na qual o País inteiro perguntava “quem matou Salomão Hayalla?”, era algo que tomava uma proporção enorme. Pai Herói é uma novela muito boa, atual.
De que forma?
É a história de um filho que tenta salvar a honra e a moral do pai. Essa nova geração poderá conhecer uma história de muita emoção – e não só a emoção de chorar – mas a pulsação de um conflito, isto é, o que toda boa dramaturgia tem que ter. Há conflitos em todos os núcleos. Inclusive, há 43 anos, dona Janete já falava de uma riqueza emergente. Já falava de poderes paralelos existentes na sociedade por meio da personagem de Paulo Autran. É uma novela que poderia ser refeita pela TV Globo com tranquilidade, com suas devidas adaptações, que não tenho a menor dúvida de que seria novamente um sucesso.
No caso de Pai Herói, a história era bastante centrada no André Cajarana, sua personagem.
Ele é muito heroico. Há a cena do assalto – e a novela era muito bem filmada pelo (diretor) Roberto Talma – que eles colocaram uma câmera de mão dentro de uma caçamba de uma caminhonete. Uma cena de perseguição pelas ruas do Leblon, em uma época sem os recursos de hoje. E o André acaba se escondendo na cobertura da Carina (personagem de Elizabeth Savalla). Muitos diziam: só em novela mesmo. Lembro-me da dona Janete dizer: “Não falem isso, gente. É tudo real. Tudo pode acontecer. O que a gente faz é adocicar a fantasia de um folhetim”.
Os personagens de Janete, mesmo os mocinhos, eram muito complexos, repletos de conflitos. Marcio, de O Astro, era assim. André Cajarana também. Idem o Cristiano Vilhena de Selva de Pedra. Como você os construía?
Ah, sempre tivemos grandes diretores ao lado de dona Janete. Daniel Filho, Gonzaga Blota, Roberto Vignatti, que era grande diretor de teatro, Walter Avancini, Roberto Talma, Paulo Ubiratan. Todos muito atentos ao folhetim e aquilo que não se pode ter ao fazer uma novela: um olhar blasé, superior. Aquela coisa de “ah, estou fazendo uma novela aí”. Nunca. Uma história popular tem que ser respeitada. Essa cumplicidade do povo com a telenovela brasileira é uma manifestação cultural.
Em Pai Herói, você contracena com Paulo Autran, em uma das poucas novelas que ele aceitou fazer inteira. Paulo levava muito do teatro para a TV. Como foi essa troca entre vocês?
Maravilhosa. Você não pode imaginar o que eram os bastidores. Riquíssimos. Conversávamos sobre teatro, literatura, filosofia, vida. E sempre com muito humor. Paulo era um homem super bem humorado. Adorava contar uma piada. Ríamos demais, às vezes antes de entrar em cena. Quando avisavam que a gravação ia começar, parávamos, respirávamos, e fazíamos cenas incríveis. Eu tinha grandes embates com o Baldaracci (personagem de Autran) e com o filho dele, personagem de Jorge Fernando. Quem viveu sabe do que eu estou falando.
Outra parceira de cena, de quem você já declarou que se tornou grande amigo, foi a Glória Menezes, que fazia a Ana Preta…
Uma querida amiga, de dentro de casa, uma irmã. Ela já era mais que consagrada como atriz. E olha que nome lindo de personagem: Ana Preta! O Cabaré da Ana Preta virou ponto de visitação. Tinha gente que queria conhecer o cabaré, que era feito dentro do estúdio. E o trabalho dessa grande atriz? Desculpe, mas estamos falando de um dos ícones das artes neste País.
Pai Herói foi um grande sucesso, mas substituiu Dancin’ Days, que foi um fenômeno da época. De início, existiu algum tipo de pressão ou cobrança para que se repetisse o bom resultado da antecessora?
Nunca! Acredite se quiser. Tanto que respondi a você de primeira. Nem pensei. Nunca houve pressão. Ponto final. Agora, em qualquer novela, a qualquer momento, sempre tem uma cobrança entre nós, atores e diretores. Não é a TV Globo que liga para a casa dos atores para cobrar. Nunca a TV Globo me disse algo do tipo, em 45 anos. Inventaram uma TV Globo que não existe. O que tem, evidentemente, são as pesquisas de mercado e os grupos de discussão. Mas nós, atores, não temos acesso a isso de imediato. Até mesmo para não contaminar nosso trabalho. A audiência não é um problema do ator. É problema da história, que pode ser ajustada. Claro, deve haver uma cobrança para o diretor da área, do núcleo. O que é normal. Acontece aqui, na BBC de Londres. A Netflix usa seus algoritmos para entender o que está sendo mais buscado.
Antes de Pai Herói, pouco tempo depois de ser contratado pela TV Globo, você fez O Astro, também da Janete. Você ainda estava no ar em Espelho Mágico quando começou a gravá-la. Como se deu isso?
Eu estava gravando os capítulos finais de Espelho Mágico, minha primeira novela na Globo, deviam faltar umas três semanas, e o Daniel Filho já estava começando a gravar as externas de O Astro. Ele estava em busca de uma atriz para a fazer a personagem Josy – a escolhida foi Sylvia Salgado. Ele queria lançar uma atriz. Em uma sexta-feira à noite, eu já estava saindo dos estúdios na Tijuca, que eram os antigos estúdios da Herbert Richers, e ele me chamou. “Tonico, já acabou?”. Eu disse, sim. “Você se importa em me ajudar: Estou fazendo uns testes com as atrizes. Quero saber como cada uma reage em frente à câmera. Você nem vai aparecer. Pode ficar com tua roupa mesmo”. Eu comecei a ler o texto. Na terceira vez, com a prática, já estava decorando. Comecei a responder mais em cima, dar as falas. Terminou. Daniel gritou lá do comando. “Valeu, Tonico!”. Já estava saindo, ele gritou novamente. “Tonico, quero falar com você. Gostei. Quero você como Márcio Hayalla”. Eu falei: “Você está louco? Estou no ar com outra novela”. Ele disse que era para eu gravar uma na segunda, terça e quarta e a outra na quinta, sexta e sábado. Mas duas novelas seguidas no mesmo horário, eu perguntei. “Isso é problema meu e do Boni”, ele respondeu. Eu cheguei em casa, contei para a minha companheira (Lidiane). Ela perguntou se eu havia gostado da história. Eu disse: “Claro, é de dona Janete, como não gostar?”. Ela, então, me disse: “Topa, a gente viaja depois”. Íamos viajar com as crianças. Foi uma permissão de Deus para que fizesse O Astro naquele momento. Foi um tremendo sucesso. Você não faz ideia o que isso significou na minha vida. Um ponto de virada.
Em O Astro, Janete te deu uma cena de nudez, muito bem contextualizada, de um filho que contesta a ganância do pai, e sai de casa nu. O que você pode contar sobre essa cena?
Ela e os diretores conseguiram a liberação na censura justamente com argumento de que não era um nu gratuito. Era um filho brigando com o pai, despindo-se da roupa que ele lhe dava. Fiquei nu mesmo. Fora da casa, o jardineiro da família coloca uma capa de chuva sob o corpo do filho. E a personagem sai caminhando como São Francisco de Assis. Um momento muito bonito. Essa cena rendeu crônicas, textos, mas, sobretudo, uma relação de carinho com o público.
Em 1986, você fez o remake de Selva de Pedra. Muita gente achou que não ia dar certo, mas foi outro grande sucesso. E Cristiano, mais uma vez, um personagem complexo, ambicioso, com cenas difíceis. Um desafio, não?
A versão clássica de Selva de Pedra, claro, é a primeira, com Francisco Cuoco e Regina Duarte. Só que era em preto e branco. E a empresa (TV Globo) não conseguia vender esse clássico para o mundo por ele ser em preto e branco. Então, o Daniel teve a ideia de refazê-la. Para você ter uma ideia, foi de Israel a Itália, dos Estados Unidos para todo o público da América Latina. Cristiano era o máximo, delícia de personagem. Contraditório, cheio de altos e baixos, de moral duvidosa. Adorei fazer. Posso apostar. Faça Selva de Pedra novamente nos dias de hoje. Pegue um bom elenco, com um grande ator jovem, como o Chay Suede. Vai ser sucesso novamente.
Você teve uma relação de amizade com a Janete?
Não era íntimo dela. Mas, sim, me considerava um amigo. Era amigo dos filhos dela, tinha uma relação próxima com o Dias (Gomes, autor, marido de Janete) – tanto que ele me convidou para fazer o Zé do Burro na remontagem de O Pagador de Promessas no teatro, com a direção com o Flávio Rangel. Não era uma relação do cotidiano, como eu tenho com Glória e Tarcísio (Tony fala no presente), Francisco Cuoco, Daniel Filho, Aracy Balabanian, Denise Saraceni, Marcos Caruso, Irene Ravache, dona Fernanda Montenegro, com quem eu falo semanalmente por telefone. Mas existe um carinho grande entre nós. Foi um prazer fazer três obras de dona Janete.
Você gosta de se ver em cena ou em trabalhos antigos?
Não gosto. Pode perguntar para qualquer diretor com quem eu trabalhei. Não vejo na hora que gravo. Daniel ficava incomodado. Fiz vários filmes com ele e jamais assisti a um copião (primeira cópia do negativo, com todas as cenas filmadas). Jamais chego no estúdio e falo “passa essa cena para mim, quero ver”. O diretor é o grande responsável. É o primeiro espectador e temos que confiar nele. E, se eu ficar vendo, vou querer fazer de novo. Não quero isso.
Como você se guia com uma personagem durante uma novela?
Bom, aí assisto à noite na minha casa. Quero ver pronto, finalizado, com música. Se estou em externa, minha esposa grava para mim. Hoje, com o Globoplay, é muito mais fácil. Assisto a hora que quiser, tomando uísque, vinho. Faço minhas análises em voz alta. Minha mulher até fala: “Não, assistir com você analisando não dá”. E leio tudo o que o autor escreve, não só a minha parte, a dos outros personagens também. O segredo de uma telenovela está em você entender o que o autor escreve nas entrelinhas. Eu adoro fazer novela, uma obra aberta. É desafiador para o público, empresa, autor e autores.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.