Governo frauda Lei de Acesso por ‘risco político’
Criada há dez anos para garantir o amplo conhecimento de dados públicos pela população, a Lei de Acesso à Informação (LAI) brasileira ganhou destaque como modelo de transparência internacional. Documentos obtidos pelo Estadão mostram, entretanto, que a norma é descumprida pelo governo Bolsonaro. Servidores do Palácio do Planalto têm orientado ministérios a avaliar o “risco político” e omitir informações nas respostas aos pedidos solicitados por meio da lei.
No dia 15 de junho, Danillo Assis da Silva Lima, assessor da Secretaria de Governo, editou uma resposta do Ministério da Saúde a um pedido da reportagem em que deixou explícita a preocupação com a entrega de informações requisitadas. “Acho que não seria o caso de exemplificar, pois se informar um ofício deverá informar todos (avaliar se os ofícios oferecem algum risco político)”, escreveu Danillo, lotado no Departamento de Coordenação Técnica da Secretaria Executiva. Os parênteses fazem parte do comentário de revisão do funcionário, que acabou deixada aparentemente por descuido na resposta à LAI.
Depois de Danillo, a resposta passou pelo crivo do superior hierárquico, o então secretário executivo adjunto da Secretaria de Governo, Henrique Marques Vieira Pinto. Ele, por sua vez, orientou que o nome do deputado Domingos Neto (PSD-CE), relator do Orçamento, fosse apagado e que o texto dissesse apenas que o parlamentar enviou “sugestões de atendimento” de repasse de verbas, no lugar de “indicações”.
A Lei de Acesso à Informação não admite critério político para concessão de informações nem filtros relacionados a conveniências de governos.
O artigo 32 da LAI define como “condutas ilícitas” do agente público se recusar a fornecer informação requerida, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa, bem como “ocultar, total ou parcialmente, informação que se encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições de cargo”.
O objetivo do pedido de informações do Estadão era saber quais deputados e senadores solicitaram e obtiveram no Ministério da Saúde repasses com emendas do relator-geral, o chamado esquema do orçamento secreto criado pelo governo Bolsonaro para obter apoio político. O caso não se encaixa em hipótese de sigilo.
Após a intervenção da Secretaria de Governo, contudo, o Ministério da Saúde deixou de fornecer documentos que detinha. A resposta final da pasta só citou a existência de três ofícios relacionados ao pedido, dando a entender que a pasta não detinha mais informações. O Estadão, no entanto, obteve posteriormente a comprovação de que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) recebeu mais de uma dúzia de ofícios redigidos por deputados e senadores pedindo a aplicação dessas emendas – e, portanto, omitiu na resposta do pedido da LAI.
Esses documentos foram repassados pelo governo ao Tribunal de Contas da União, após solicitação do ministro Walton Alencar Rodrigues, relator da análise das contas da Presidência da República no exercício de 2020. O Estadão teve acesso a parte do material. Os documentos encaminhados ao TCU revelam pedidos de repasse de R$ 50 milhões do senador Marcelo Castro (MDB-PI) e de R$ 25 milhões do senador Roberto Rocha (PSDB-MA). Já o deputado Felipe Carreras (PSB-PE) indicou “recurso extra de R$ 2,5 milhões” para a prefeitura de Bonito-PE. Por sua vez, o deputado Coronel Chrisóstomo (PSL-RO) indicou R$ 4 milhões para Guarajá-Mirim-RO.
Além desses, o governo não deu publicidade via LAI a um ofício de Domingos Neto, relator do Orçamento, enviado em 18 de dezembro de 2020 ao então ministro-chefe da Secretaria de Governo, o general da reserva Luiz Eduardo Ramos, com o assunto “RP9”. No arquivo, o deputado indica aplicação de R$ 205 milhões pela Funasa em variadas ações em diversos municípios. Ramos negou ter qualquer participação na distribuição de recursos das emendas de relator-geral. A entrega do ofício via LAI o desmentiria.
Provas. “É a primeira vez que temos uma comprovação de uma ação para manipular informações”, afirmou Greg Michener, professor da FGV-EBAPE e Fundador do Programa de Transparência Pública da FGV. “A gente já sabia que o governo não tinha uma boa disposição à Lei de Acesso à Informação. O que acontece é que sempre as tentativas de enfraquecer a lei de acesso à informação pública foram por regulamentos, decretos”, disse. “Agora, a gente vê uma comprovação de que essas tentativas são acompanhadas de uma estratégia de fato, quando se está agindo em descumprimento da lei. As provas são robustas.”
O economista Gil Castello Branco, secretário executivo da ONG Contas Abertas, avalia que a Secretaria de Governo orienta respostas numa tentativa de minimizar o “risco político”. “É o batom na cueca. Todo mundo já sabia que isso estava acontecendo, mas não havia documento que escancarasse a intenção do governo de negar o direito da sociedade de conhecer essas informações”, disse. Para ele, o caso levanta dúvidas sobre outras respostas que estejam sendo fornecidas em decorrência de solicitações ao governo.
Por sua vez, o pesquisador da FGV-EASP Fabiano Angélico afirma que houve uma “afronta” aos princípios da lei. “Servidor público não pode deliberadamente confundir, dar informação incompleta, retardar, atrasar”, destaca. “O que vejo nesse caso é uma conduta ilícita descrita no artigo 32”, disse.
O diretor executivo da ONG Transparência Brasil, Manoel Galdino, disse que a LAI garante o direito de acessar informação produzida ou custodiada pelo órgão. “Então, se o que foi enviado pelo governo ao TCU mostra que tem a informação, ele deveria ter entregue”, ressaltou. “E, quando junta isso ao fato de que existe uma orientação de não se informar todos os ofícios, você tem o artigo 32 da LAI que mostra que isso é ilícito.”
Ex-ministro da Controladoria-Geral da União, Valdir Simão afirmou que o episódio caracteriza “fraude, violação e ilícito” à LAI. “O agente público pode até dizer que se equivocou, mas aqui me parece que há provas cabais de que houve um ato deliberado de omissão”, disse. Ele lembra que o Brasil, desde a criação da LAI, tem sido considerado um dos países com administração pública mais transparente. “É grave do ponto de vista da segurança e da credibilidade das informações governamentais”, afirmou o ex-ministro da CGU.
O advogado Bruno Morassutti, da agência de dados Fiquem Sabendo, ressaltou que o governo não informou que a análise da solicitação passou pela Segov, e que isso também revela falta de transparência. “Se não fossem eles se descuidarem, a gente jamais saberia da participação da Segov”, disse.
Histórico. Não é a primeira vez que o governo Bolsonaro se movimenta para restringir acesso a informações. Em janeiro de 2019, um decreto presidencial ampliou o poder de decretar sigilo de informações a funcionários. Em março de 2020, uma Medida Provisória suspendeu o prazo de resposta. As duas iniciativas foram barradas.
Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou. A Secretaria de Governo não explicou a orientação de avaliar “risco político” e a edição da resposta pelo servidor da pasta.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.