Vida depois da privatização
Inspirado no pai do diretor, ‘Homem Onça’ reflete sobre os efeitos da venda de grandes estatais nos trabalhadores e suas famílias
Havia dois ou três bons filmes participando da competição brasileira no recente Festival de Gramado. Carro Rei, Homem Onça e O Novelo. O primeiro venceu o prêmio de melhor filme do júri oficial, o terceiro ganhou o do público. Homem Onça levou apenas o prêmio de melhor atriz coadjuvante para Bianca Byington. O longa de Vinicius Reis estreou na última quinta, 26. Numa entrevista por Zoom, um dia antes da premiação, o jornal O Estado de S. Paulo conversou com o diretor e com o ator protagonista, Chico Diaz, que está em Portugal.
“Esse filme começou a nascer há mais de dez anos, de um processo que acompanhei muito de perto. Meu pai era funcionário da Vale do Rio Doce, e foi atingido no processo de privatização da empresa nos anos 1990. Embora tenha uma pegada política e esteja saindo no momento em que outro governo adota o discurso da modernidade para justificar novas privatizações, para mim esse filme é muito íntimo, muito pessoal. É um filme sobre meu pai, porque eu acompanhei muito de perto os efeitos da situação da Vale na vida dele – e na nossa vida, enquanto família”, diz Vinicius.
Em Gramado, boa parte da discussão no debate sobre Homem Onça foi ocupada pela questão estética – afinal, é um filme. Chico Diaz provocou – “Acho que precisamos falar sobre o Brasil”. É o que Vinicius vem fazendo desde A Cobra Fumou, seu documentário sobre a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, de 2002.
Lá atrás, quando Vinicius começou a escrever o roteiro, o projeto chamava-se O Primeiro Mulambo. Depois, virou Montanha Russa, antes de ganhar o título definitivo de Homem Onça. Cada um desses títulos tinha sua justificativa. “Meu pai era um funcionário graduado. Na empresa de ficção, a Gás do Brasil, o personagem é um dinossauro. Sabe tudo sobre questões energéticas, mas nesse novo mundo de inglesismos ele vai sendo marginalizado, como se fosse um mulambo qualquer.”
Sua vida sofre mudanças radicais, como uma montanha-russa. “A narrativa dele se desenvolve em dois tempos, dois casamentos. O homem urbano, casado com Silvia Buarque – e Chico foi casado com ela na vida. Depois, o isolamento, o mato, e o novo casamento – com a personagem de Bianca.” No tempo presente, ele vai sofrendo a mutação. “Você tem de olhar essa mancha, cuidar dessa mão.”
Surge o homem onça, um sobrevivente no mundo que não respeita o meio ambiente, nem as pessoas. “As questões econômicas e ambientais se inter-relacionam, e no âmbito da família.” Na infância de Pedro, o protagonista, havia essa onça. O repórter lembra os incêndios no Pantanal, no ano passado, a história das onças que viraram emblemas. Uma delas precisou ser recuperada em cativeiro por causa das patas queimadas e o Brasil inteiro acompanhou o tratamento.
Por mais que abordem temas ligados à sociedade, ao macro, ao Brasil, os filmes de Vinicius Reis terminam sempre por se ligar ao micro – a família está no centro de seu cinema. Durante a gestação de Homem Onça, ele fez Noites de Reis, em 2013. Com outro Diaz, o Enrique, e Bianca Byington. Mãe e filha que se isolam numa cidade do litoral para se recuperar de uma tragédia. A Folia de Reis coincide com a volta do marido, que abandonara a família e agora todos vão tentar aparar suas arestas. “É um dos temas mais universais. A menos que se seja um ermitão, família todo mundo tem, seja de sangue ou eletiva.”
A perda da estabilidade, a insegurança econômica e emocional, tudo isso atinge o personagem de Chico em Homem Onça. Em 2008, Vinicius já estreara Praça Saenz Peña, outra família, o mesmo Chico Diaz, que escreve um livro sobre o bairro carioca e isso termina por afetar a ligação com a mulher e a filha. “Sempre encarei o Homem Onça como uma fábula da era das privatizações, mas o filme virou essa coisa mais familiar. No filme, a empresa estatal é competitiva, saudável, mas passa por um enxugamento brutal para se tornar atraente no mercado. É uma violência, e só quem não se liga na realidade não se dá conta de que isso está ocorrendo de novo com a Petrobras, os Correios.”
O diretor e corroteirista – com Flávia Castro e Fellipe Barbosa – acha importante destacar que começou no cinema numa época crítica. “A questão com meu pai foi na segunda metade dos 90. No começo daquela década, quando me voltei para o cinema, houve a grande crise do fechamento da Embrafilme, o cinema brasileiro parecia que não tinha futuro.” Vamos falar do Brasil, nisso Vinicius e Chico estão de acordo.
Entre as notícias e os ensaios
Confira abaixo a entrevista que Chico Diaz concedeu ao jornal O Estado de S. Paulo.
Estamos falando de Portugal, é isso? O que você faz aí?
Vim para participar da Festa do Teatro de Almada e terminei ficando. Estou ensaiando uma peça que depois queremos levar para o Brasil.
Homem Onça é uma fábula sobre a era das privatizações. Vamos falar sobre o Brasil, como você pediu no debate do filme em Gramado.
Sigo a distância, e muito preocupado, todo esse horror que ocorre por aí. Isso vai ter de acabar. Não é só a pandemia, é tudo. No filme falamos de um processo que ocorreu há quase 30 anos, e está de volta. O personagem é inspirado no pai do Vinicius (Reis, o diretor). Contaminei-me com a humanidade dele.
Que peça é essa que você ensaia?
Rei Lear, já ouviu falar? (Risos) É uma montagem bem despojada. Só duas atrizes e eu no palco. O teatro aqui já está presencial. Vamos estrear e, no ano que vem, levar para o Brasil.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.