• ‘Semipresidencialismo pode fortalecer o presidente no Brasil’

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  • 26/07/2021 17:03
    Por Wilson Tosta / Estadão

    O cientista político Christian Lynch avalia que uma eventual mudança do regime político do Brasil para o semipresidencialismo, como a defendida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pode ser benéfica para o País. Para Lynch, que é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), um sistema que permitisse ao presidente dissolver a Câmara e concedesse ao Legislativo responsabilidade formal de governo, com um primeiro-ministro sustentado pelo Congresso, pode equilibrar o jogo entre os poderes. A seguir, trechos da entrevista ao Estadão.

    A proposta de semipresidencialismo começou a ganhar tração após ameaças de Braga Netto às eleições em 2022. O presidente da Câmara, Arthur Lira, aparentemente, vê o semipresidencialismo como solução para manter eleições e evitar um golpe. Como analisa esta situação?

    A proposta de reforma do presidencialismo em si não tem a ver com o atual contexto. Trata-se de um fantasma que ronda a República desde a sua instauração: há sempre alguma proposta de reforma desse tipo no Congresso. A proposta ganhou musculatura no começo do governo Bolsonaro para coibir seu golpismo. A opinião pública, porém, só se interessou pelo assunto nos últimos dias, porque o Lira falou nele. E a recepção não foi boa, porque se imaginou que ele queria mudar de assunto, sentado em uma montanha de pedidos de impeachment. Agora se sabe que o Lira deu tração à proposta porque o golpismo bolsonarista chegou a um ponto insuportável e ele quis dar um “chega pra lá”. Foi como se dissesse: não vai ter impeachment do presidente, mas também não vai ter golpe contra o Congresso.

    Por que a discussão agora?

    A crise de legitimidade do sistema representativo no Brasil se arrasta há dez anos. Ele motivou as veleidades de tutela do judiciarismo lavajatista nos últimos anos, e agora, do militarismo autoritário. Era natural que se renovasse o debate relativo às consequências negativas da rigidez do nosso sistema de separação de Poderes e freios e contrapesos. Para os que defendem a reforma do presidencialismo, o sistema deveria comportar outros mecanismos, além do impeachment, para resolver crises entre Executivo e o Legislativo ou para se livrar antes do prazo de um governo desastroso. O semipresidencialismo e o referendo revocatório são inovações comumente discutidas. Do ponto de vista mais conjuntural, o assunto apareceu agora no meio de outros projetos que o Lira se comprometeu a botar para discutir com seus eleitores na Câmara. Ele quer cumprir o prometido porque já está de olho na sua reeleição à presidência da Câmara. A escalada golpista de Bolsonaro só tornou a discussão politicamente mais oportuna, inclusive como forma de dissuasão. Entre a tutela de juízes e a tutela de generais, é preciso achar uma saída para reaprumar nossa democracia. Não dá para simplesmente restaurar o mundo anterior a 2013, fingindo que nada aconteceu.

    O semipresidencialismo proposto não seria um passo para perenizar no Estado o poder do Centrão, já presente no governo e cuja influência agora cresce?

    A ascendência do Centrão não tem a ver com o sistema de governo. O bloco já estava em governos anteriores e foi ganhando relevância por três fatores mais gerais. Primeiro, pelo advento da onda conservadora que atacou o País desde 2014 – os partidos do bloco são conservadores. Segundo, pelo caráter pragmático do conservadorismo centrônico, que lhe permite apoiar qualquer governo, com maior ou menor elasticidade, em troca de certas vantagens. E, por último, pela pulverização partidária, que dificulta ao presidente governar apenas com seu partido ou com uma coalizão ideologicamente homogênea. Enquanto essas condições não se alterarem, o Centrão será relevante para a governabilidade em qualquer sistema de governo. Quanto ao argumento de que o semipresidencialismo enfraqueceria o presidente, ele é discutível. A dificuldade para formar coalizão tem tornado o presidente cada vez mais refém das maiorias. Por outro lado, embora o Congresso hoje tenha muito poder, ele tem pouca ou nenhuma responsabilidade no governo.

    O objetivo da mudança não seria tornar permanente o poder do Centrão contra a Presidência?

    A pergunta supõe que os proponentes da reforma sejam sempre agentes mal-intencionados, conservadores e fisiológicos, desejosos apenas de se perenizarem no poder. A verdade é que qualquer ação envolve cálculo racional dos agentes, seja qual for sua ideologia, e medidas boas para eles são aquelas que não os prejudicam. Os presidencialistas também calculam ser mais vantajoso para suas carreiras preservar o sistema. Quanto à motivação ideológica para a reforma, eu a vejo na boca de gente muito diferente, tanto na esquerda como no centro e na direita, talvez mais ao centro. Já seus adversários tradicionais se concentram em dois grupos. O primeiro é o dos autoritários, como os reacionários e os militares, que desejam um Executivo forte contra as ameaças de subversão oriundas de um Congresso percebido como leniente, corrupto, faccioso e progressista. O segundo é formado pela esquerda nacionalista, que aposta no Executivo forte para promover medidas igualitárias contra um Congresso visto como reduto dos retrógrados. Essa repulsa pelo Congresso faz parte da nossa cultura política de país atrasado e periférico, marcada pela herança do absolutismo ilustrado, transmudado depois em positivismo e certa linha de desenvolvimentismo. Para esses dois setores, a modernização depende sempre de um chefe de governo forte, ilustrado e bem-intencionado capaz de enfrentar “o atraso”. Mas eu me pergunto se, em vez de desconfiar do Congresso, não se deveria oferecer-lhe mais incentivos para funcionar de modo mais republicano.

    O semipresidencialismo proposto ao Brasil seria a formalização de uma situação que já existe, com o crescente poder do Legislativo frente ao Executivo?

    A indispensabilidade dos governos de coalizão foi reaprendida após o impeachment do Collor e deu origem ao chamado “presidencialismo de coalizão”. Eu vejo o semipresidencialismo como uma oportunidade de aperfeiçoá-lo, e não para substituí-lo. É impossível ao presidente exercer a miríade de funções de governo, administração, representação e articulação política exigidas hoje, como presume a ficção presidencialista. Por isso, os presidentes, na prática, têm um ministro, geralmente o da Casa Civil, encarregado informalmente de superintender a administração e fazer a articulação política. Por que não formalizar essa posição, criando a figura de um primeiro-ministro indicado pelo presidente, responsável diante dele e da Câmara? Aparentemente se tem mais medo do nome da coisa do que da própria coisa, que já existe. Da mesma forma, por que não fortalecer o presidente, permitindo-lhe dissolver a Câmara e convocar eleições, em caso de crise ou quando se tornar minoritário? As novas eleições permitiriam ao povo se manifestar e aumentariam o poder de pressão da opinião pública. Hoje o presidente não tem o que fazer, que não seja sofrer impeachment ou alugar o bloco centrônico. Um sistema de governo em que o presidente tenha o anteparo de um primeiro-ministro que goze de sua confiança e da Câmara, com poderes de dissolvê-la, poderia vir a tornar o presidente mais forte do que é hoje. A dissolução pairaria como uma espada sobre a cabeça dos deputados chantagistas, que teriam de disputar novas eleições. Um país do tamanho e com as assimetrias do Brasil precisa de presidente forte, que sirva de força centrípeta que contrabalance as tendências centrífugas. É essa força que vem faltando ao presidente no nosso presidencialismo.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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