Laurentino Gomes e suas duas trilogias
Em entrevista dada ao jornal Valor, em novembro de 2011, Laurentino Gomes revelava sua trajetória profissional como jornalista. Aprendeu como tornar um texto agradável de ler, fugindo do estilo cansativo da maioria dos acadêmicos. Um livro de História do Brasil não precisava ser chato. Também menciona seu encontro com Paulo Coelho, autor que bateu a marca de mais de 350 milhões de livros vendidos. Ele lhe ensinou como fazer o marketing de um livro. Os conselhos foram seguidos à risca. Os livros de Laurentino já ultrapassaram os 2,5 milhões de exemplares vendidos aqui e lá fora.
A primeira trilogia é formada pelos livros 1808, 1822 e 1889. O livro 1808, já de cara, estourou em vendas, e foi seguido do sucesso dos outros dois. Além de fazer um belo trabalho em despertar o interesse do público brasileiro em relação à nossa própria história, fornecendo informações corretas, fugindo do caricato, ele também foi hábil ao utilizar recursos de marketing até mesmo nos subtítulos de seus livros.
Ele resume o livro 1808 nos seguintes termos: “Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil”. Mas bem que poderia ter escrito o seguinte: Como Dom João VI não se deixou imobilizar pelo medo, enganou Napoleão, e trouxe para o Brasil 200 milhões de cruzados, quase metade do meio circulante português, e só retornou com 50. Falta de identidade nacional e a baixa autoestima vigentes tornaram mais vendável o que foi publicado.
O subtítulo de 1822 tem também uma boa pitada de marketing: “Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado”. Note, agora, caro leitor, o subtítulo do livro Dom Pedro I, escrito por Neill Macaulay: “A Luta pela Liberdade no Brasil e em Portugal – 1798-1834”. Cerca de 80% deste livro cobre o período em que Dom Pedro I viveu no Brasil e o restante narra a luta heroica e vitoriosa contra seu irmão absolutista Dom Miguel. Neill Macaulay adota um tom respeitoso em relação a Dom João VI e a Dom Pedro I como estadistas de grande visão. Pedro I soube fazer a coisa certa nos momentos cruciais de sua vida. Como nos diz Macaulay, lutou pela liberdade, nossa independência e contra o poder real absolutista nas duas cartas que lhe coube fazer aprovar: a nossa constituição de 1824 e a portuguesa pouco mais tarde.
O livro 1889 tem, na mesma linha, o subtítulo “Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a proclamação da República no Brasil”. A alternativa poderia ter sido mais fiel aos fatos: Como um imperador, que preparou diligentemente sua filha para sucedê-lo, acabou vítima de um golpe militar que derrubou as melhores instituições que o País já teve e sente falta delas até hoje e de seus mecanismos efetivos para coibir os desmandos do andar de cima. Laurentino até concordaria por ter ciência e mencionado estes fatos no livro.
Na segunda trilogia, ele foi fundo. Já lançou o volume I (Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares) e o II (Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil). O volume III vai abordar o Movimento Abolicionista e o tráfico ilegal de cativos até o fim da escravidão legal com a Lei Áurea.
Já tive a oportunidade de ler os volumes I e II dessa nova trilogia focada no tema da escravidão, um trabalho de fôlego, meticuloso, sobre o nosso passado. Em relação à ela, Laurentino nos fala em olhares brancos, olhares negros e olhares atentos em que ele busca se enquadrar, vale dizer, um olhar bem infor-mado sobre os fatos. É difícil resumir algo tão denso em poucos parágrafos, mas é possível pôr em relevo três contrapontos que merecem registro.
[C O N T I N U A]
No primeiro volume, ele nos diz que a escravidão era vista como um fato normal da vida por livres e cativos. Vigorou por 59 séculos, se contarmos a partir dos registros escritos da história humana. A palavra escravo vem de eslavo, gente loura de olhos azuis, transacionada num mercado que funcionou por séculos no sul da Rússia. O próprio Zumbi teve escravos oriundos de suas razias. Ao mencionar que o Brasil, ao longo do século XVIII, teria sido o local de maior concentração de escravos do mundo (2 milhões), ele não toca no fato de que a escravidão perdurou por mil anos no Império Romano, e deve ter superado este número por ter durado tanto tempo. Mas nos fala do tráfico de 12 milhões de cativos nos territórios mulçumanos ao longo de quase mil anos.
No segundo volume, ele nos relata a escravização de negros por escravos alforriados e do alto número de escravos forros desde os tempos coloniais. Por volta de 1780, Minas Gerais tinha 394 mil habitantes, dos quais 174 mil eram escravos. Dos restantes 220 mil, quase 150 mil já eram negros livres. Trata-se de fato único no mundo. As alforrias nos EUA eram fato raro. A convivência com alforriados na vida civil, e mesmo em campos de batalha, inclusive índios, na luta contra os holandeses, nos vem desde o início da colonização portuguesa. A miscigenação, que não houve na América Hispânica, formou uma fusão de etnias nada comum mundo afora. O racismo americano era visceral, e se manteve com segregação rígida até a década de 1960, bem como o da África do Sul até 1991, e em outras regiões do mundo.
No último volume, a sair em 2022, caberia a Laurentino investigar também a responsabilidade da república no agravamento da desigualdade. Ela nasceu racista com seu projeto de embranquecimento da população. O desleixo, por 13 décadas, com a educação pública de qualidade comprova o descaso. Ela interrompeu o avanço significativo ocorrido no século XIX em prol da igualdade: leis e alforrias que já haviam libertado 80% dos cativos antes mesmo da Lei Áurea ser assinada. Descartou as propostas que o último gabinete do Império pretendia implantar para evitar que os libertos ficassem ao Deus-dará. A República percorreu o caminho inverso do Império. Deu no que é.