Um embate entre razão e consciência no longa ‘Anna’, de Heitor Dhalia
Uma atriz novata deseja interpretar Ofélia numa montagem de Hamlet, mas precisa convencer o diretor de que é capaz de sustentar a personagem. Esse é o ponto de partida para o novo longa-metragem de Heitor Dhalia.
Em Anna temos o ambiente do backstage, como em Tio Vânia em Nova York, de Louis Malle, ou Moscou, de Eduardo Coutinho. Não se trata de comparar filmes incomparáveis, mas constatar que neles há, em comum, a convicção de que a cena teatral se espraia para além do palco. Vida e arte se entrelaçam, na suposição de que a vida seja teatro, e vice-versa. Ou que a vida seja sonho, seguindo o mote de Calderón de la Barca. Atuamos para plateias insatisfeitas e talvez não haja aplausos na descida do pano.
Na interseção entre os dois planos – do ‘real’ e da ‘ficção’ – esses filmes encontram seu élan vital. E quanto à peça escolhida, tida como o ápice de Shakespeare? Bem, os grandes textos vivem através dos séculos porque falam de nós, geração após geração. Os dramas de atrizes e atores em busca de seus personagens são também os nossos, à procura de nossos papéis na vida.
Anna (Bela Leindecker) deseja ser Ofélia, a moça que se suicida na tragédia do Príncipe da Dinamarca. Terá maturidade para o papel? É do que ela terá de convencer Arthur (Boy Olmi), encenador famoso, destro na arte da manipulação e escaldado por uma montagem fracassada da mesma peça. Ele é um homem maduro; ela, uma garota.
Várias linhas podem se cruzar nesse vislumbre de bastidores. Poder, desejo e ética mesclam-se a sentimentos mais pedestres como a rivalidade entre colegas e oportunismo profissional. Nem sempre o comportamento entre as pessoas espelha a grandeza dos sentimentos associados à arte. Mesmo porque Shakespeare, que está por trás da história contada em Anna, não costuma nos dar lições banais de moral. Seus personagens são tudo menos exemplares, no sentido mais vulgar do termo. Saímos tocados e transformados de suas peças porque nos reconhecemos na complexidade de cada um e nas contradições humanas que vemos no palco.
Daí podermos entender algo menos difícil, que é a determinação da atriz novata em viver um papel difícil e fazer carreira. E as motivações, nem sempre claras, nem sempre benévolas, do diretor veterano. Este é um velho lobo abusivo, mas também artista no melhor sentido do termo, capaz de tudo para corresponder ao desafio ético da arte que abraçou.
Claro que, de imediato, se poderá associar Anna às pautas contemporâneas sobre relacionamentos tóxicos. E não há dúvida que obras de arte são sempre contemporâneas, comentam, diretamente ou a contrapelo, o tempo em que são feitas. Há, então, algo que remete ao #MeToo nessa relação feroz entre Arthur e Anna.
Mas limitar-se ao mais evidente e atual seria perder um pouco da sombra enorme que Hamlet projeta sobre esta obra cinematográfica e sobre nossa cultura. Afinal, a peça atravessou séculos sendo um fenômeno de popularidade por uma série de bons motivos estéticos e também porque dramatiza algo crucial em nossa civilização – o conflito entre consciência e ação, como assinalou o crítico Northrop Frye.
A consciência nos faz covardes, refletiu Hamlet, mas só ela é capaz de evitar que a ação se torne insensata e pura brutalidade, sobretudo em reinos apodrecidos. É quando o dilema moral passa a fronteira e invade o campo da política, a esfera do poder. Quer coisa mais atual?
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.