• A fábula da pós-verdade

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  • 27/06/2021 08:00
    Por Ataualpa Filho

    — Corrupaco, papaco, a raposa fuma, pita, dá pitaco e vende razão a preço barato!

    Foi assim que o papagaio, de cima da palmeira onde cantava o sabiá, começou a divulgar as peraltices de uma velha raposa que não tinha papa na língua, falava pelos cotovelos e pelos diversos aplicativos das redes sociais. Danou-se a vender teoria. Quando abria a boca era para dar pitadas e pitacos a torto e a direito, embora fosse mais severa com o torto do que com o direito. No entanto, bastava ser contrariada para desatar uma saraivada de adjetivos impróprios para a hora do almoço de domingo.  Mas, mesmo assim, havia quem a admirasse. E, entre os seus admiradores, estava o papagaio que comia milho para os periquitos levarem a fama. Mas só os machos; as fêmeas que estavam sob as suas ordens mantinham-se discretas, pois ele cantava de galo.

     Um dia, a velha raposa foi ao Tororó e bebeu água de chocalho, destravou a língua, sentiu-se poliglota, por isso saiu da terra do tatu bola e foi pelo mundo afora. Ao chegar à terra da águia, bebeu da água que passarinho não bebe, por isso ficou com a língua embolada. Mas, o maior problema ocorreu quando ela baixou a cabeça para beber da água fria, viu-se no espelho d’água. No instante em que admirava a própria imagem, a mutuca de Narciso a picou. Como não estava vacinada, perdeu a humildade e o ego inflou. Passou a se sentir a dona da cocada preta. E, de lá, por videoconferência, falou para o papagaio:

    — Você é o louro dos trópicos.

    E ele acreditou! Começou também a arrotar teoria pelo achismo do senso comum, sem respaldo ideológico e sem respeitar a Ciência. Com a vaidade inflada pela raposa, saiu da palmeira onde cantava o sabiá e foi lá para o galho em que a coruja protegia os filhotes, pois ela ficou sabendo que as fronteiras estavam abertas para águias e gaviões.

    O papagaio, com ar intelectual, começou a tagarelar, provocando-a. Sentia-se incomodado com o silêncio dela e não entendia por que os homens a tinham como símbolo de sabedoria. Ficava intrigado com a habilidade dela em mover o pescoço calmamente.

    — Dona Mãe Coruja, o que é o existir?

    Sem perder a calma, ela falou:

    — Senhor Papagaio, não fique assim tentando repetir o que dizem os homens. Quando o senhor conseguir entender a diferença entre razão e verdade, verá, com clareza, o sentido do existir. Quando o senhor encontrar a razão do existir, vai entender como a verdade liberta. Deixe-me cuidar dos meus filhotes em paz. O amor não se explica…

    Ao ouvir o criquirir das maritacas, o papagaio levantou o olhar e viu o bando que passava. Nessa hora, também avistou um tucano todo engomadinho, já se arrumando para pousar na palmeira, logo voltou para o lugar onde estava. E, de lá, por chat, perguntou à velha raposa que já se sentia com um rei na barriga:

    — Qual a diferença entre razão e verdade?

    Ela foi curta e grossa: — Verdade não existe. Razão, cada um tem a sua, depende do tribunal em que você será julgado. Pare de fazer perguntas idiotas, você quer virar melancia, verde por fora, vermelha por dentro? Não entre nessa imbecilidade coletiva de querer discutir ideologia. Preocupe-se apenas em questionar o comportamento de quem a produz. Veja o exemplo da águia fogoió: elegeu-se, inventando pós-verdade e destruindo os adversários com fakenews.

    Mas, na terra do tatu bola, passaram tudo num liquidificador, ninguém sabe mais quem é quem, por isso sempre surge a discussão sobre revolução cultural. Só que tudo está junto e misturado e derramado na pedra. Como não se pode mais usar canudinho, muitos querem levar a vida na lábia.

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