• ‘Restrições na Lei de Improbidade criam imensa dificuldade em investigação’

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  • 17/06/2021 17:56
    Por Pepita Ortega e Fausto Macedo / Estadão

    Aprovado na Câmara dos Deputados com uma união ‘específica’ entre oposição e situação, o projeto de lei que altera a lei de improbidade fortalece maus gestores e causa dificuldades ‘imensas’ para investigações, avalia o procurador Ubiratan Cazetta, presidente da principal entidade da classe, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Em entrevista ao Estadão, Cazetta ressaltou o impacto do projeto apelidado de ‘lei da impunidade’ na proteção ao patrimônio público, ressaltando que seus efeitos podem beneficiar políticos já condenados.

    “Qual é o peso maior? É o peso da proteção ao patrimônio público, da proteção, da honestidade, ou é o peso da existência de uma ação (de improbidade)? O simples fato da existência da ação não significa condenação. Botando na balança, o meu ‘sofrimento pessoal de gestor’ e o impacto disso na proteção à coisa pública, no que isso significa para sociedade, eu prefiro ficar do lado da sociedade”, ressaltou.

    A discussão sobre as mudanças na lei de improbidade se estendem há anos – assim como as críticas e reações ao teor das alterações propostas. Como mostrou o Estadão no ano passado, o Ministério Público Federal chegou a ressaltar que o projeto criava ‘uma excludente de ilicitude genérica intolerável’ e representava ‘um dos maiores retrocessos no combate à corrupção’.

    Segundo Cazetta, a forma que o projeto foi votado na casa legislativa, em regime de urgência, gerou preocupação aos investigadores, que não puderam debater o texto final relatado pelo deputado Carlos Zarattini (PT-SP). Há uma expectativa de que o projeto possa ser melhor discutido no Senado, para onde o projeto foi encaminhado, diz o procurador.

    CONFIRA A SEGUIR OS PRINCIPAIS PONTOS DA ENTREVISTA:

    A ANPR já havia apontado diferentes retrocessos no novo texto da lei de improbidade. Na avaliação do sr. qual deles é o mais grave?

    A mais evidente de todas é você exigir a prova do dolo, a prova da vontade consciente em todos os casos. Isso cria uma dificuldade imensa porque em em vários casos da lei atual, você pode trabalhar com o que nós chamamos de dolo genérico, ou seja, que se presume que a pessoa soubesse daquilo. É algo tão tão evidente que o ato é lesivo ao patrimônio, ou de que é enriquecimento ilícito, que você não tem que provar que ela tinha intenção de causar aquele dano. E isso causa uma dificuldade muito grande de prova, para você conseguir avançar. Então houve uma restrição muito grande do campo de atuação da lei. Fora isso, dois prazos se tornaram muito difíceis. Um, o prazo pra terminar as investigações: 180 dias, mais 180, em casos complexos, em que você depende manifestação do Tribunal de Contas, da Controladoria, ou perícias, na vida real, nos casos práticos, é praticamente impossível. Não se prega que seja em determinado caso, mas o prazo tem que ser um prazo exequível, dentro da realidade, e hoje não é, esse 180 mais 180 dias, ele é praticamente impossível. E o prazo da prescrição, que também se tornou um complicador, porque você tem a prescrição, hoje, a partir de fatos objetivos, quando a pessoa deixa o cargo, se é o caso de um um agente político, você tem cinco anos. Hoje, com esse prazo de oito anos, da data do fato, nem sempre o fato se torna conhecido rapidamente. E se você tiver um uma situação dessa de mudança de mandatos e o fato ocorreu no primeiro ano de um mandato que, com a reeleição chega a oito, você na prática só tem um ano pra discutir esses fatos. Descobrir, preparar a documentação e discutir. Fora outros prazos que foram criados, que são as prescrições intercorrentes, assim, você propôs ação, você tem quatro anos até uma sentença condenatória. Teve a sentença condenatória, você tem quatro anos até que o acórdão do tribunal confirme. Então, todas essas somas de prazo, elas são muito limitadoras, elas criaram um problema sério pra pro acompanhamento dessa lei.

    Então questão do dolo tem um impacto grande e direto nas investigações e condenações.

    Sim, porque a vontade é algo muito pessoal, muito subjetivo. A pessoa pode falar: ‘não, eu não quis causar dano’. Sim, mas você tinha uma obrigação. Na visão da lei de hoje, você tem que demonstrar que aquilo foi um ato voluntário, que não foi algo que aconteceu sem que ele tivesse feito nada, mas você não precisa demonstrar que ele teve a vontade específica de causar o dano. Agora você tem que demonstrar. Como é que você entra dentro da percepção da pessoa, do que ela quer ou não quer?

    O debate sobre o texto aprovado pela Câmara já se estende faz anos – assim como as críticas sobre seu teor. Como o sr vê a aceleração da aprovação?

    Para nós isso é muito preocupante, porque você não mexe com a lei, com a importância que tem a lei de improbidade, dessa forma. Porque você não deu espaço pra debate. Pode se dizer ‘ah, mas houve 14 audiências antes’. Mas essas audiências não tinham um texto final. O texto final surgir depois do meio dia, de um dia, e ser aprovado na noite do dia seguinte impede qualquer correção. Assim, até coisas que podem estar boas no projeto, no substitutivo e que mereceria uma redação melhor, não houve espaço pra isso. Então, agora nós vamos ter que fazer esse diálogo em cima desse novo texto no Senado, para ver o que que a gente consegue construir de correções e debates mais amplos no Senado.

    Para quem o sr acha que interessa o esvaziamento dessa lei?

    Há dois campos claros de debate. Um aqueles que dizem que a a lei atual impede que pessoas de bem entrem na política, porque correm o risco de uma ação de improbidade. Não vou negar que haja muitas ações de improbidade, que isso seja um problema para quem se lança pra administração. Agora, o lado da moeda é o lado da sociedade. Qual é o peso maior? É o peso da proteção ao patrimônio público, da proteção, da honestidade, ou é o peso da existência da ação? O simples fato da existência da ação não significa condenação, nós temos que aprender isso, é um debate a ser construído. Então, botando na balança, o meu ‘sofrimento pessoal de gestor’ e o impacto disso na proteção à coisa pública, no que isso significa para sociedade, eu prefiro ficar do lado da sociedade. Acho que a sociedade perde com isso e os gestores também perdem. Porque aquele que é honesto continuará sendo honesto, continuará tendo sua gestão bem adequada. O que é desonesto, fica mais tranquilo, porque ele sabe que a chance de ser condenado ficou muito pequena. Então, acho que o debate colocado, como foi na noite de ontem, de que ‘estamos protegendo o gestor’, ele tem um erro de premissa. O bom gestor sempre será protegido. Agora o mau gestor com essa restrição que se deu na lei de improbidade ele sai fortalecido.

    Quem o sr. acha que são os principais inimigos dessa lei de improbidade que se tem hoje? O governo federal, os aliados dele na Câmara?

    Isso houve uma junção de de fatores. A reclamação contra a lei de improbidade, começa dos prefeitos e vai até o Governo Federal. Foi isso que foi refletido ontem na união dos diversos matizes. Ontem nós tínhamos oposição e situação uníssona, em muito por conta pressão. Então, pelos últimos anos, pela reclamação, pelas condenações que ocorreram, pelas pessoas que ficaram inelegíveis, isso criou um ambiente que fortaleceu uma união muito específica entre oposição e governo. Só basicamente o PSOL, Podemos e PSB ontem manifestaram a a necessidade de mais debate. Todos os outros partidos se uniram contra a lei.

    Onde está o principal foco no Congresso que fulminou a lei?

    A Câmara dos Deputados ecoa toda essa pressão que vem da base, que afeta os próprios deputados. A própria lógica da formação da Câmara, que depende muito desse voto popular, nas bases, isso faz com que a Câmara seja o principal porta-voz dessa crítica. Vamos ver agora no Senado, se a gente consegue ter um ambiente de debate mais tranquilo, menos apaixonado, do que o que nós vimos ontem na aprovação.

    Os srs. têm essa expectativa de que no Senado há um espaço para discussão desse texto final?

    Temos, temos expectativa de que o Senado tenha, primeiro, mais tempo nessa discussão. E temos uma uma noção de que o Senado tende a ser composto por ex-governadores, enfim, por políticos com uma bagagem mais consolidada, digamos assim, e que nos ouvem. O que não quer dizer que a lei vá ser alterada, não é certeza de alteração, mas há um espaço de diálogo mais viável no Senado do que o que nós vimos ontem na Câmara dos Deputados.

    O sr. avalia que antigos réus, já condenados, poderão usar o novo texto retroativamente para se beneficiar?

    Ela tem esse efeito de retroação, sim. No que nós chamamos de direito sancionador, toda vez que você elimina uma conduta, ela deixa de ser punida, aquele que estiver com processo em andamento, ou com casos de sentença não transitada em julgado, eles vão ter o direito a esse novo tratamento. Então, isso promove um impacto muito forte. Os que já estão com sentença transitada em julgado, a situação é um pouco mais complicada, mas eles podem buscar o que nós chamamos no direito de ação rescisória. Aí tem que ver os prazos. Mas enfim, é como se nós tivéssemos dito que um fato deixou de ser crime. A pessoa que está respondendo por um processo por aquilo não será mais punida. Então, esse impacto existe, ele não olha só pra frente. A mudança da lei de improbidade olha para trás também. A regra do jogo muda no meio do caminho, você vai ter resultados alterados.

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