Cine Muda: São Paulo, Sociedade Anônima, Luís Sérgio Person
Quem sobrevive aos primeiros trinta minutos de pura misoginia em São Paulo, Sociedade Anônima, é gratamente recompensada por um filme de magnitude quase que inconcebível para a tão sofrida indústria brasileira de cinema dos anos 1960. É inclusive falando sobre indústria que esse filme se torna tão magnífico, tomando para si a complexidade da discussão do desenvolvimento industrial no Brasil em diversos níveis da sociedade, o filme parte de um sujeito ordinário, Carlos, para explorar os impactos de uma cidade como São Paulo na vida de seus habitantes.
Mesmo a misoginia do início ganha tons ambíguos com o avançar da história, já que o público é apresentado a mulheres inteligentes e socialmente ativas, em contraponto a redução mercadológica de seus corpos e da violência naturalizada que o filme parece propor logo no início.
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O protagonista desta história não é Carlos simplesmente, é, na verdade, o trabalhador médio da metrópole dos anos 1960, um sujeito culturalmente despreparado para viver no espaço urbano, mas que paradoxalmente é peça chave do seu funcionamento, já que serve simultaneamente de mão de obra com sua força bruta e de consumidor com sua irreflexão, sujeito aos vícios e as armadilhas do mundo moderno. Tal limitação é evidenciada no contraste entre o protagonista e Ilda, uma mulher culta, amante das artes e um tanto melancólica. Carlos se sente inferiorizado pelos conhecimentos da mulher, e ao tentar contrapor a sabedoria teórica desta propõe o seu conhecimento prático. Mas é justamente por viver no ambiente civilizado da urbanidade que sua experiência prática é inférti e não encontra eco na sua história individual. Este é, portanto, um homem sem teoria nem prática, um ser privado da selvageria que busca simular no início do filme, está também apartado da cultura, já que esta parece ser inacessível para o seu tipo.
Um sujeito cindido entre o que já foi e o que poderia ter sido, um limbo de homem que não se concretiza. Encontra, quase que ao acaso, um sentido de ser ao trilhar caminho no mundo dos negócios do industrialismo paulista. É nesse momento do filme, quando entramos de cabeça na intimidade da burguesia de São Paulo, que o filme tem suas discussões de sociedade mais interessantes. Arturo, o industrialista italiano e sócio de Carlos, parece estar completamente adaptado ao ritmo que a cidade impõe. Um sujeito que não se deixa incomodar pelas inconsistências e hipocrisias demandadas pela vida dos negócios para se dar bem, um personagem que serve de contraponto para o heroísmo do protagonista, que não consegue aceitar as concessões morais que lhe são exigidas para que obtenha sucesso na vida. Toda essa inocência, no entanto, não se sustenta, é apenas um sentimento apaixonado, sem fundamento, sem planificação, sem crédito disponível para sua construção, diferente das sólidas indústrias que surgiam como grama.
É, no entanto, mediante a um colapso mental que o rapaz se vê impossibilitado de dar sequência a sua carreira no business, mas como se fosse um ímã, é atraído de volta para as estruturas de ferro da metrópole.
São Paulo, Sociedade Anônima é um filme narrativamente desafiador, já que conta com uma estrutura nada convencional, em que não fica explícito o que se passa no passado e o que se passa no presente, de modo que o filme consegue surpreender com seus inserts aparentemente desconectados, dando as cenas do filme um teor simbólico bastante integrado e uma liberdade de construção de significados excepcional. O grande problema do filme talvez seja o estágio em que se encontrava a industria cinematográfica brasileira a época, já que não tinhamos um histórico de grandes produções economicamente sustentáveis e tão pouco de grandes investimentos. O espectador vai perceber as limitações técnicas do filme principalmente no som, onde a dublagem sofre para encontrar sincronia com o movimento labial dos personagens. Além disso, a continuidade de determinadas cenas também encontra problemas, quem sabe pela ausência de uma profissionalização mais massiva da produção de filmes no país. Porém, o filme é tão espetacular que essas e outras problemáticas passam batidas, o que fica é a impressão de um pedido de socorro, como se esse filme representasse um apelo pela industrialização do cinema no Brasil já nessa época. Talvez por isso ecoe tão bem na atualidade, o pedido segue atual.
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* Maitêus é petropolitana, formada em História pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Maitêus explica que a coluna ‘Cine Muda’ surge como uma forma de popularização da “sétima arte”, inserindo o leitor/internauta na história do cinema.