• À sombra do Maraca

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  • 23/02/2017 13:00

    Oficialmente, o estádio do Maracanã fora construído para comportar 200 mil pessoas. “Ora, 200 mil pessoas deveria ser para jogo comum, nunca para uma final de campeonato mundial” – diziam alguns. A frieza dos dados oficiais não considerava às milhares de almas e corações que, irmanados e espremidos, ultrapassaram a lotação e jamais foram contabilizados com exatidão. Desta vez a emoção superou a razão e o bom senso. Mas se Deus não é brasileiro, como dizem, por certo é um turista por demais apaixonado pelo Rio, e o estádio suportou mais de 400 mil pés pulando sobre seu dorso sem tremer, envergar ou ruir. Naquela tarde a engenharia nacional, com alguma ajuda Divina, foi a primeira a tornar-se campeã mundial. A partir daquela tarde, o estádio Municipal do Maracanã, ou Mário Filho, como queiram, passou a ser o maior templo oficial dos penetras. Principalmente em grandes clássicos, nunca e jamais saberemos o número exato de espectadores. Se contarmos os ingressos falsos e os que, recolhidos, voltam às bilheterias para serem revendidos, os “parentes e amigos” de porteiros, bilheteiros e fiscais, as “autoridades fajutas”, os  militares, crianças, idosos e o assustador contingente de ambulantes não oficializados, ficaríamos abismados com a diferença entre o público contabilizado e o não contabilizado. 

    Meu coração menino pôde sentir a primeira grande emoção daquela tarde, na voz do locutor do estádio, ao dar a escalação da seleção brasileira. Em sua voz, bem empostada, ritmada e melódica, denotava-se o sabor de um samba-exaltação. Não, não estava ali na boca do gramado apenas os onze jogadores que iriam participar daquela final. Estavam os futuros campeões do mundo! Emoção ainda maior foi a de ouvir os mais de 200 mil presentes a entoar o hino nacional, magistralmente executado pela Banda dos Fuzileiros Navais. Foi de arrepiar! Afinal, nossos jogadores perfilados no gramado representavam a “pátria de chuteiras”.

    O jogo começou nervoso, como era de se esperar e mais nervoso acabou o primeiro tempo, com o placar em branco, como branca era a cor do nosso uniforme. Branca é a cor da paz, e paz nunca faltou. Nem nos momentos de euforia, nem nos de expectativa. Tampouco nos instantes de desespero mudo de uma massa espremida que – hoje sabemos – estariam por vir. Não há anestésico mais poderoso do que uma grande catástrofe. Mas, com o empate, ainda seríamos campeões. Papai pareceu prever a tragédia. Acendia um cigarro na guimba do outro e mastigava nervosamente, o fósforo queimado. Veio o segundo tempo e, com ele, o gol de Friaça. Logo dele, do reserva. Parecia ser um prenúncio de sorte, e com sorte não se deve brincar. Nós brincamos. Se há uma coisa que o destino vive a se indispor, essa coisa se chama lógica em futebol. A lógica dos números frios. O jogador de futebol é feito de nervos, um feixe de nervos capaz de, levado pela emoção, superar a razão. 

    Com o primeiro gol do Uruguai, ouviu-se exclamação em uníssemos; depois do segundo, nada mais se ouviu. As lágrimas despencavam em silêncio e os soluços não tinham som. A multidão desceu as rampas do estádio pisando nas nuvens negras do destino. Ao invés de cimento, flocos de nuvens, pois não se ouvia o solar dos sapatos sobre o concreto frio. Os bondes passavam lotados e em respeitoso silêncio, como se dirigissem ao mais dramático dos funerais. Não sentimos a distância entre o Maracanã e a nossa casa. Voltamos a pé, com almas entorpecidas e bocas emudecidas. O embrulho com os sanduíches foram largados nas cadeiras especiais do estádio. Papai deixou para desabar o choro ao chegar a casa. Aquela foi a primeira vez que o vi chorar, não pude esquecer. A imagem me foi mais emocionante que a perda do título de campeão mundial. 

    Outras Copas estariam por vir; choro igual, eu jamais veria. A imagem desapareceu de meus olhos como a tela do computador em que escrevo irá desaparecer irá se apagar assim que eu o desligar. O Maracanã resistiu à euforia da multidão após o gol de Friaça, mas, pela primeira vez, eu temi por sua estrutura diante do peso do silêncio e da imobilização da massa. E cruzou os anos, como eu, como a Cidade. Presenciou a despedida de tantos de seus craques sem nunca, ele mesmo, se despedir. 

    Volto à minha rotina, ao meu jornal de hoje. Leio aqui que um político fala em demolir o velho estádio. Está ultrapassado, encolhido, inútil – diz ele. Talvez. Mas, mesmo obsoleto, tal qual uma Torre de Pizza tropical, sua sombra inclina-se sobre o espírito do Rio, sobre a História do Brasil, com o peso de 400 mil pés, com a força daquela derrota e com a esperança renovada em cada vitória que presenciou. Nenhuma assinatura de político mudará isto. O Maracanã foi reconstruído, renovado e continuará erguido para sempre na minha memória, plantado naquela tarde de 1950 e regado pelas lágrimas de meu saudoso pai.

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