Misericordiar
Sempre fui fascinado pelas palavras. Quando criança gostava de pronunciar “Constantinopla”, “transatlântico”. Na adolescência, disseram-me que inconstitucionalissimamente era a maior palavra da nossa língua. Eu não tinha nenhuma noção do seu significado. Depois fiquei sabendo que a considerada maior era: Pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose. E, até hoje, não consegui recitar o poema “City” de Augusto de Campos, publicado no livro “Viva Vaia”, que reúne os poemas do autor de 1949 a 1979. Não tenho fôlego para dizer:
“Atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivoracidade”.
E, à medida que o tempo passa, a palavra que mais me fascina, não pelo aspecto fonético; mas semântico, é Misericórdia.
No livro “O nome de Deus é Misericórdia”, o Papa Francisco, em conversa com Andrea Tornelli, foi muito feliz ao dizer: “Etimologicamente, misericórdia, significa abrir o coração ao miserável. E vamos logo ao Senhor: misericórdia é a atitude divina que abraça, é o doar-se de Deus que acolhe, que se dedica a perdoar. Jesus disse que não veio para os justos, mas para os pecadores. Não veio para os sadios, que não precisam de médico, mas para os doentes. Por isso, pode-se dizer que a misericórdia é a carteira de identidade do nosso Deus. Deus de misericórdia, Deus misericordioso. Para mim, esta é de fato a carteira de identidade do nosso Deus”.
No citado livro, que ganhei de presente de um amigo que considero como irmão, encontrei o verbo “misericordiando”, com a noção de um presente contínuo que caracteriza quem age “in persona Christi”. Esse verbo no gerúndio requer uma reflexão, principalmente diante de fatos como os relatados no filme “Spotlight – Segredo Revelado”. É preciso distinguir as atitudes humanas da ação divina. Temos que assumir as nossas falhas. Às vezes percebo que há uma sutil tentativa de expor os pecados da criatura humana com o propósito de dizer que “um Criador Perfeito não pode criar uma obra imperfeita”. E assim associar a ideia de que Deus “errou” ao criar o homem. E por esse “erro”, não mereceria ser chamado de Deus. Esse raciocínio é tão frágil que nem chega a levar em consideração a questão do livre arbítrio, nem considera a infinita Misericórdia de Deus.
No livro mencionado, o Papa Francisco afirma: “Nenhum pecado humano, por mais grave que seja, pode prevalecer sobre a misericórdia ou limitá-la”. Todo pecado pode ser perdoado. Mas para que isso ocorra, é preciso que haja o arrependimento do pecador, que ele se reconheça como tal e peça perdão. A dificuldade, às vezes, está no orgulho que o leva a não reconhecer os próprios erros. É necessário cultivar a humildade para tornar-se digno para receber a misericórdia divina. O joelho no chão ajuda bastante.
Assisti ao referido filme de Tom McCarthy, eleito como melhor do ano de 2015, por três associações americanas de críticos de cinema, por indicação de um amigo, por quem também tenho um carinho fraterno. Já tive a oportunidade de dizer a ele, que o livro “O nome de Deus é Misericórdia” expõe o outro lado da Igreja que é a face de Cristo. O filme é baseado em fatos reais, retrata diversos casos de abuso de criança por padres católicos. Mas não é justo usar esses casos para depreciar o Cristianismo. Este é fundamentado no Amor. E foi o próprio Cristo quem disse: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amo”. (Jo 15,12). Esse Amor é a Misericórdia.