Má gestão faz clubes sofrerem com ações trabalhistas de atletas e colaboradores
O roteiro costuma ser conhecido. Dirigente de futebol contrata jogador por cifras que não cabem no orçamento e tempos depois o vínculo é rescindido. No segundo ato, o caso normalmente vai parar na Justiça e o desfecho não surpreende ninguém: ações trabalhistas que se proliferam em gestões futuras e, assim, acabam por comprometer ainda mais a já combalida saúde financeira dos clubes.
Vários aspectos podem ser detectados nessas contratações que acabam por lesar os cofres dos clubes. Geralmente, os débitos são referentes à falta de pagamento de salários, direitos de imagem, férias e impostos não recolhidos e até adicional noturno. A má gestão e irresponsabilidade administrativa são alguns dos fatores apontados por advogados especializados em Direito Esportivo. Dirigentes, empresários e ex-atletas também foram ouvidos pelo Estadão sobre essa prática muito usual no futebol brasileiro.
A lista é extensa e atinge clubes da grandeza de um Corinthians, por exemplo. Com uma dívida que supera a casa dos R$ 900 milhões, o clube vive às voltas com pagamentos de ações trabalhistas. O Cruzeiro vive uma situação mais delicada pelo fato de, além da dívida de pouco mais de R$ 890 milhões e da vasta lista de batalhas judiciais, ainda ter de conviver com a pressão de estar na Série B do Campeonato Brasileiro.
Um dos casos mais recentes ocorreu no início do mês com o Santos. O time da Vila Belmiro sofreu um revés nos tribunais e foi condenado pela Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) da CBF a desembolsar pouco mais de R$ 6 milhões ao meio-campista Bryan Ruiz. Em pouco mais de dois anos de clube, o atleta fez 12 jogos e não marcou nenhum gol. Fora dos planos do técnico Jorge Sampaoli, o jogador buscou uma rescisão amigável no ano passado, mas não houve acordo. A tendência agora é de que uma nova reunião aconteça para buscar um parcelamento da pendência.
Na semana passada, o Estadão divulgou estudo que mostra a situação preocupante dos principais clubes do Brasil. De acordo com os dados analisados pela consultoria Sports Value, a dívida total dos principais clubes do País superou os R$ 10 bilhões. Só o Atlético-MG, por exemplo, tem uma dívida acumulada de R$ 1,2 bilhão. E uma fatia importante desse déficit tem as ações trabalhistas como componente.
Para Eduardo Carlezzo, advogado especializado em direito esportivo, a inadimplência dos clubes no pagamento aos atletas durante o contrato vigente gera um custo difícil de ser equacionado. E essa política de contratar e não honrar o vínculo piora quando a transação é feita com atletas contratados do exterior. “Os clubes daqui são compradores de jogadores estrangeiros ou mesmo de brasileiros que estavam longe do país. Ao fazer isso assumem obrigações em moeda de fora. Ao não pagar essas dívidas, houve uma explosão nos últimos dois anos dos valores devidos em razão da elevação da taxa do dólar e do euro. Em maio de 2019, por exemplo, o dólar custava por volta de R$ 4. Hoje custa R$ 5,30. Claramente o custo cambial machucou as contas de vários clubes que deixaram de honrar seus compromissos”.
Na esfera judicial ou esportiva as dívidas sofrem ajustes, tanto na taxa de juros quanto na correção monetária, explicou Carlezzo. “A taxa de juros de 1% ao mês é largamente aplicada, mais IPCA ou IGP-M, dependendo da situação e da natureza da dívida. Em 2020 o IGP-M teve alta de 23,14%. É muita coisa. Os débitos ficaram muito caros e tornaram-se impagáveis. Os clubes gastam demais e não geram receita suficiente”, concluiu.
Já para Pedro Trengrouse, advogado especialista em gestão esportiva da Fundação Getúlio Vargas, a tentativa de mudar esse panorama é acabar com as gestões amadoras no futebol. “A solução é obrigar clubes de futebol profissional a se transformarem em empresas, como aconteceu na Europa. Assim o dono é responsável. Se não pagar, vai à falência”.
CONTAS NO AZUL – Nesse processo de comandar os clubes em meio à crise, Marcelo Paz, presidente do Fortaleza, defende o compromisso orçamentário. “A premissa de tudo é a responsabilidade. Sou empresário e gestor, e na minha empresa, eu só contrato o que eu posso pagar. Não posso trazer jogadores esperando recursos que podem vir ou não, como cotas por avanço de competições, por exemplo. O que precisa é contratar corretamente. Isso envolve salários, comissões, direitos econômicos”, afirmou.
Como no futebol nenhuma contratação tem garantia de sucesso, Paz falou da importância de negociar com o atleta no momento de pagamento de pendências. “As rescisões existem sempre, principalmente no final do ano. Nesse caso é negociar com os atletas, mas de forma transparente. Parcelar os pagamentos dentro de um fluxo de caixa que o clube possa cumprir e pagar o que foi estabelecido”, disse.
Agora sob a gestão do mandatário Júlio Casares, o São Paulo vem adotando a política de “humildade e pés no chão” para recolocar as finanças em dia. O déficit do clube ultrapassa os R$ 570 milhões. E parte dessa dívida tem como origem ações judiciais movidas por ex-jogadores. Em entrevista coletiva virtual, o presidente são-paulino falou da situação financeira do clube e de que maneira pretende sanear as dívidas.
“O São Paulo precisa de eficiência e velocidade. Assumimos dívidas que precisam ser quitadas a curto prazo. Algumas na Fifa e isso nos preocupa. Nós tivemos que nos ordenar. Começamos a traçar o realinhamento dessa dívida conversando com os credores. Foi o que nós fizemos. Tiramos a pressão do curtíssimo prazo, escalonamos algumas prioridades, quitamos outras por questão emergencial. Logo no primeiro trimestre, reduzimos os custos de nossas despesas em 10%”.
FALTA ÓRGÃO REGULADOR – Aos 54 anos, Marcelo Djian entende bem desse tema. Zagueiro revelado pelo Corinthians no final dos anos 80, ele também trabalhou como dirigente e atualmente é agente de jogadores. Com passagem pelo futebol francês, ele usou a experiência de ter atuado na Europa para falar sobre as ações trabalhistas que minam a saúde financeira dos clubes. “Essa prática acontece porque não tem um órgão regulador que fiscalize essa situação. Na França tem a Direção Nacional de Controle de Gestão (DNCG). Os clubes são obrigados a se reportar ao órgão e passar o valor aproximado do que vai ter de orçamento na temporada. Na metade do ano, acontece uma reunião para verificar os gastos. Se um clube gastou demais, existe um controle para fiscalizar”, afirmou o ex-zagueiro em entrevista ao Estadão.
Marcelo Djian compôs a diretoria do Cruzeiro entre 2018 e 2019 e viu de perto o estrago que gestões ruins podem provocar. “O clube tinha uma dívida de R$ 500 milhões quando cheguei lá. Isso foi resultado de gestões anteriores. Um clube grande como o Cruzeiro não cai do dia para a noite. É um processo. Fui jogador e conheço. Se você quer o atleta do seu lado, esteja em dia. A partir do momento que você não paga, os problemas aparecem”, falou.
QUASE MEIO ANO SEM RECEBER – Quem olha a trajetória do ex-goleiro Gilmar e vê a conquista de títulos importantes como o Campeonato Carioca de 1991 e o Campeonato Brasileiro de 1992 pelo Flamengo não imagina as dificuldades que o atleta passou naqueles tempos. Nesse período, ele lembrou que o atraso nos salários era uma constante na Gávea. “Em 92 chegamos a ficar cinco meses sem receber. Mas sabíamos que a única forma de ganhar dinheiro e reverter a situação era conquistar títulos. Eu, o Júnior e o Gottardo nos unimos e lideramos aquele grupo para ganharmos o campeonato”, afirmou.
Apoiado na experiência de ter trabalhado como empresário e dirigente, o tetracampeão mundial apontou como problema principal a falta de preparo das pessoas que comandam os clubes. “Isso acontece porque eles (dirigentes) nunca respeitam o orçamento e nos momentos difíceis fazem loucura (contratações fora da realidade) para resolver o problema imediato. Assim comprometem o organograma do clube gastando verbas futuras e deixando de pagar obrigações trabalhistas”.
PROCURA POR HOLOFOTES – O ex-meia Delei, que presidiu a AGAP (Associação de Garantia ao Atleta Profissional), cobra não só responsabilidade administrativa, mas dirigentes focados no trabalho. Para ele, muitos diretores abraçam o cargo de mandatário para ficar em evidência. “Muitos agem de forma imediatista, têm relações com empresários e, pior, não frequentam o vestiário. Muitos estão ali para aparecer na imprensa. Para você comandar um clube, é necessário entender de futebol. Não é porque você deu certo no seu segmento profissional que isso vai significar sucesso no futebol”, afirmou.
Em um mercado tão competitivo como o futebol, Delei falou que muitas vezes o atleta assina contrato com o clube já sabendo que vai ter de buscar o que tem direito na justiça. “O atleta precisa jogar. Quem não joga não aparece. E se ele está num time que pode projetá-lo, ali tem uma chance de transferência. Hoje com três meses de pendência, o jogador pode procurar outro clube. Então aquele dinheiro vira uma espécie de poupança. Tá assinado, então um dia ele vai receber”, comentou.