• Violino e violoncelo feitos de PVC nas periferias

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  • 16/05/2021 07:00
    Por Tiago Queiroz / Estadão

    Em uma modesta casa localizada numa travessa da Avenida dos Estados, na cidade de Santo André, uma equipe de luthiers (profissionais que constroem e consertam instrumentos musicais de forma artesanal) fabrica instrumentos para que crianças e jovens de baixa renda possam ter acesso aos primeiros passos na música clássica. O que chama atenção nesse caso, além da bela ação cultural, é a matéria-prima utilizada para a fabricação dos violinos, violas e violoncelos: canos de PVC. A partir deste inusitado material, os canos de policloreto de vinila passam pelas mãos hábeis desses artesãos e se transformam em instrumentos capazes de extrair a Nona Sinfonia de Beethoven, uma das primeiras músicas ensinadas para as crianças.

    Trata-se do projeto Fábrica Sonora idealizado pelo maestro Ricardo Calderoni em 2017, que se uniu aos irmãos Rogério e Sérgio Schuindt atuantes há duas décadas no projeto Locomotiva e, juntos, criaram um prolongamento do projeto, o Fábrica Sonora Locomotiva. “É uma maneira de poder fazer de modo rápido instrumentos de qualidade e acessíveis para as crianças do projeto”, argumenta Calderoni, profissional com passagens pela Juilliard School e com regência no Carnegie Hall.

    São três os polos de atuação do Locomotiva, espalhados pelas cidades de São Paulo, Santo André e Mauá. Nesse período de pandemia, as aulas foram ora presenciais, respeitando os protocolos de segurança, ora online nos momentos mais críticos. As aulas são diárias e, no formato presencial, tem a duração de duas horas e no modo virtual, ministrado até recentemente dessa maneira, tinha a duração de cinquenta minutos. No total, duas mil crianças e jovens entre sete e dezessete anos já foram atendidas no projeto. Hoje, 414 compõem o grupo e mais de 125 já foram contemplados com os instrumentos de PVC. Além das aulas de música, os jovens têm noções de luteria também.

    O trabalho é possível graças à lei de incentivo do ProAC, entre outros patrocinadores. A ideia nasceu em 2008, com a visita do maestro Rogério ao projeto El Sistema, na Venezuela, que tem como pilar aulas diárias e gratuitas para jovens carentes do país latino-americano e apresentações constantes, modelo que foi replicado em terras brasileiras. O expoente máximo das aulas do El Sistema é o maestro Gustavo Dudamel, recentemente contratado para reger a Orquestra de Paris.

    O maestro Rogério esclarece que o projeto brasileiro não tem a finalidade de formar músicos profissionais. “O maior objetivo é dar referencial para eles. Todo dia tocando, participando dos ensaios de duas horas, você aprende a ter um espírito de gana, de realização. Eles param de brigar na escola, de brigar na rua. O poder de concentração aumenta muito, quando se aprende a ler uma partitura, tocar em uma orquestra”, exemplifica.

    Em uma manhã típica de outono, fria e chuvosa no Jardim Itapark, periferia da cidade de Mauá, a pequena Gabrielly Ribeiro Nunes dos Santos, de 9 anos, participava de aula online na sala de sua casa. Ao seu lado, o cão Tito parecia se entreter com as notas saídas do pequeno violino de PVC. Sua mãe, a técnica de enfermagem Camilla, aprova as aulas. “A Gabrielly adora tocar, mas não tinha se adaptado a um violão que tínhamos por aqui. Já o violino, ela adora. Além dele, ela tem um teclado que ganhamos de uma amiga. De forma autodidata, ela começou a passar as notas musicais que aprendeu no violino para o teclado. Muito bonito de ver isso.” As músicas preferidas de Gabrielly são Asa Branca, A Ponte de Londres e a Nona Sinfonia de Beethoven, cuja execução, com a paisagem do mar de casinhas sem reboco e uma parte ainda verde da encosta da Serra do Mar ao fundo, deixou emocionado o maestro Calderoni, que acompanhou a reportagem à casa da jovem musicista.

    No outro lado do celular, estava Brenda Regina da Silva, de 19 anos, distante alguns bairros na mesma cidade de Mauá. A jovem professora também é fruto do projeto Locomotiva, que tem como uma de suas características promover os alunos mais “antigos” a professores dos colegas iniciantes. Brenda começou a ter aulas em 2018 e já leciona para as crianças que estão começando. Ela continua frequentando as aulas no projeto com um professor “avançado”. Seu sonho é um dia poder tocar em uma orquestra profissional. “A música é a cura da alma. No final do ano, participar da apresentação que fazemos com mais de 300 músicos é mágico”, afirma.

    Produção de luthier

    Na casinha de Santo André, o responsável pela construção dos instrumentos é o luthier Ivan de Oliveira, que foi contratado pelo maestro para dar vazão à demanda por violinos resistentes e de baixo custo para os jovens. O luthier se empolga ao explicar o passo a passo da produção e destaca que a principal qualidade dos instrumentos é sua durabilidade. Por serem destinados ao estudo, muitas vezes caem no chão, sofrem pancadas que seriam fatais a instrumentos de madeira.

    Tudo começa com um cano de 100 mm de diâmetro por 50 cm de comprimento, a partir daí, o material é amolecido e transformado em chapa com um soprador térmico. São muitos passos, mas a oficina consegue a partir disso produzir violinos, violas e violoncelos para os estudantes. “O grande segredo desses instrumentos de plástico é a produção dos ‘efes’ na caixa de ressonância”, diz o luthier. Esses “efes” são duas aberturas acústicas na tampa superior feitas uma a uma de forma artesanal pela equipe, que utiliza gabaritos feitos com antigas chapas de raios X. “Esse é o grande teste para ser um luthier por aqui”, afirma Oliveira.

    Um dos rapazes que trabalham por lá e que passou nesse teste é Samuel de Oliveira. Além dele, outros três, todos maiores de idade, participam da produção. Samuel tem a vida profissional voltada hoje para o projeto. De manhã, sai de Sapopemba, bairro da zona leste de São Paulo, rumo à luteria em Santo André, onde trabalha na produção dos instrumentos até a hora do almoço. De tarde, assume a cadeira de professor de instrumentos de percussão na orquestra do projeto – seu instrumento favorito é a bateria. “Para mim, a maior satisfação é poder contribuir com o aprendizado das crianças, ajudar nesse processo não tem preço”, ressalta ele que, antes de se profissionalizar como um luthier e professor de bateria, trabalhava no ramo de Tecnologia de Informação em uma empresa. “Hoje, estou muito mais realizado com o que faço. Nosso maior combustível é ver o desenvolvimento da criançada”, comenta.

    Os instrumentos fabricados por eles não deixam a desejar nem mesmo para músicos profissionais, tais como Mônica Picaço, violoncelista de 30 anos. Junto com o maestro, forma um duo de violoncelo e violão, e também participa de algumas aulas para as crianças, fazendo recitais de demonstração de repertório utilizando os instrumentos de PVC. “Eu sinto que são muito parecidos com os instrumentos convencionais de madeira. Você consegue emocionar as pessoas da mesma maneira. Além do mais, a aparência deles é muito bonita. Chamam a atenção pela cor branca”, diz a musicista.

    Um dos alunos do projeto, Alisson Duarte Maschio, de 14 anos, estuda violino com a professora Brenda e, segundo a jovem mestra, é um dos seus alunos mais aplicados. O menino resume a importância que o projeto tem para esses jovens. “Sonho todos os dias que estou tocando violino numa Orquestra Profissional, lá na Sala São Paulo, junto com os violinistas e o maestro. E a plateia apreciando uma arte incrível como essa”, diz o jovem, para logo em seguida completar: “Todos os dias não, de sete dias da semana, eu sonho com isso cinco”, diz Alisson. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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