Gente não é lixo
O filme Matrix revela um mundo em que o povo anestesiado vive escravizado ao jugo de poucos que a tudo dominam. A realidade é suja mas, mascarada por drogas e truques, faz a sordidez parecer luminosa. Um mundo de exclusão que mente seus podres. Matrix é também o poema em que digo “toda escória, a nós surpreende. É que desapetece o farrapo. Por isso, o andrajo que somos, de nós mesmos escondemos nos alvos nosocômios. E os calamos nos cemitérios que, caprichosamente, caiamos. (…) De toda ruína sempre desviamos.(…) deslavadamente, mentimos. Desgraçadamente. Mentimos. Está aí, nosso vício: autoengano”. Eu devia ter incluído os presídios no poema.
Os presos rebelados Brasil afora não vieram de Marte. A maioria veio de famílias destroçadas numa sociedade de injustas desigualdades, com fúteis valores que não prezam a educação efetiva e a construção de personalidades saudáveis. No Judiciário, sempre observei a ficha anterior do criminoso. Em regra, o apenado cruel de agora fora adolescente infrator, e este, antes de delinquir, recebera medida protetiva por maus-tratos em famílias cujos antecedentes iam revelar mães precoces, pais ausentes, baixa escolaridade e subemprego. Um círculo vicioso interminável, tratando já as crianças como lixo, para que se corrompam na adolescência, se criminalizem na vida adulta, virando o lixo penal que se entulha nos presídios, fora da nossa vista.
O Brasil vem, sistematicamente, mentindo a si mesmo, Matrix mascarando a explosiva realidade da desigualdade social e da insegurança pública depositando presos em latrinas. Seres humanos enlatados como coisas, à proporção de trinta ou quarenta amontoados em celas de cinco. Pois na crônica da semana passada, vimos que até o lixo físico precisa ser selecionado, separado e reciclado, e mesmo o que não for aproveitado, precisa ser adequadamente tratado. Não se mistura orgânico com plástico, vidro com lata. Lixões a céu aberto, como se viu, reagem quimicamente no entulho, dão gases tóxicos, incêndios espontâneos e chorume que contamina as águas do solo. E volta a nós, todo esse lixo feito rebelião, em molde de doença e desgraça. Nossos presos são misturados como detrito em lixões. Autores de crimes graves acabam junto a ladrões de galinha, assassinos, com estelionatários. Muitos que já pagaram pena, esquecidos no buraco negro da burocracia judiciária. A divisão por periculosidade vai às favas, em favor das facções que dominam os estabelecimentos. A lei prevê a reeducação do preso, oportunidade de estudo e trabalho digno. Mas como estudar ou trabalhar, se sequer existe espaço para deitar e dormir?
É cruel saber que seres humanos foram decapitados e as cabeças amontoadas viraram fogueiras macabras. O horror. Mas há quem tenha celebrado a barbárie, querendo mais Carandirus. É o pessoal que recita “direitos humanos para humanos direitos” em crítica a excessos abolicionistas de certos militantes, mas que, ao repetirem um mantra fascista estimulam a que aceitemos tratar gente como lixo. Gente não é lixo. Gente é pra brilhar, disse o poeta. Gente até é para ser punida severamente, quando for o caso, mas recuperada, sempre que possível. O que escapa disso dá no rastilho de rebeliões que assistimos, cúmplices da barbárie que se faz genocídio cujas consequências sobre nós se abaterão. Porque, aprendemos, todo detrito malcuidado, seja lixo, seja gente que fazemos de lixo, a nós voltará como veneno.
denilsoncdearaujo.blogspot.com