• Sabedoria em 1824 e insensatez em 1988

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  • 24/04/2021 08:00
    Por Gastão Reis

    Se você, caro (a) leitor (a), me perguntasse o que difere as constituições que funcionam das que fazem de conta, eu lhe diria para verificar os dispositivos da Carta que regulam e punem, com rigor e agilidade, os desvios de comporta-mento e práticas antidemocráticas dos que exercem o poder. Este divisor de águas nos permite fazer um cotejo da constituição do Império, de 1824, com a última republicana de 1988, a sexta, desde a primeira, de 1891. Vou-me ater, com esclarecimentos, à questão-chave deste artigo.  

    A primeira coisa a ser dita foi a avaliação feita pelo renomado Affonso Arinos de Mello Franco, profundo conhecedor de Direito Constitucional, em artigo comemorativo do sesquicentenário da carta de 1824. Para ele, foi a melhor de todas. Exagero? Acredito que não pelas razões que passo a expor.

    O poder moderador, como nos informa o jurista Carneiro da Cunha, era a chave de toda organização político-institucional do Império: “Como detentor do Poder Moderador, o imperador seria figura inviolável e sagrada, sem responsa-bilidade pelos atos de governo, cujas funções seriam a de nomear os senadores, nomear e demitir os ministros de Estado, suspender os magistrados, perdoar e moderar penas impostas a réus, conceder anistias em casos urgentes, aprovar e suspender resoluções dos conselhos provinciais, sancionar decretos e resoluções da Assembleia Geral, e até dissolvê-las quando assim o exigisse a salvação Estado, convocando imediatamente outra.”

    Numa primeira leitura, parece poder excessivo dado a uma única pessoa. Aqui, algumas ressalvas são importantes. A definição do imperador como figura inviolável e sagrada não se restringe apenas a ele. O cristianismo, ao proclamar a igualdade de todos perante Deus, nos engloba, sem exceção, na mesma categoria de inviolabilidade e reafirma o lado sagrado da vida humana. Esse igualitarismo cristão é pouco ressaltado, mas nem por isso menos importante.

    Os poderes amplos concedidos ao imperador vêm sempre acompanhados da expressão “ouvido o Conselho de Estado”. O imperador fica resguardado da tentação das decisões monocráticas tão ao gosto de certos ministros do STF. Quando se diz que o imperador “não tem responsabilidade pelos atos de governo” tal afirmação está assentada na tradição parlamentarista. O Primeiro-Ministro e o Chefe de Estado são figuras distintas. A responsabilidade pelos atos de governo é dele e dos demais ministros. Os regimes assentados no parlamentarismo, no mundo inteiro, ainda hoje, estabelecem essa diferença. Nas crises, o Chefe de Estado é quem toma a dianteira para restabelecer a governabilidade sem perder o seu cargo.

    Quanto às outras funções do imperador, repito, sempre ouvido antes o Conselho de Estado, cujos cargos eram vitalícios, permitindo aos conselheiros autonomia para concordar ou não com o imperador, elas foram essenciais para resguardar o interesse público dos desmandos dos políticos ou da perda de confiança diante da população. E ainda de decisões equivocadas ou corruptas de magistrados. Este instrumental de defesa ágil do interesse público só foi preservado, de modo formal, nas constituições republicanas brasileiras.

    É preciso também examinar o dia a dia do governo, baseado na tradição, para detectar o grau de vigilância sobre aqueles que exercem o poder, mesmo quando a constituição é omissa. A prática das reuniões semanais do Primeiro-Ministro, na época denominado Presidente do Conselho de Ministros, com o Chefe de Estado, o Imperador, também revela a frequência com que os atos de governo eram acompanhados. Essa rotina é mantida na Inglaterra até hoje.

    Não só isso. Havia respeito ao meio-ambiente quando nos lembramos do replantio da atual floresta da Tijuca, que resolveu o problema de falta d’água no Rio de Janeiro. Militares sobre controle civil, ponto de honra dos políticos do Império. Magistrados que extrapolassem podiam ser suspensos e colocados à disposição de um tribunal para emissão de uma sentença definitiva.

    Façamos agora um contraponto com o patético Brasil de hoje.

    Os três poderes, ao longo do século XIX, eram acompanhados de perto em seu desempenho. Os políticos tinham clara consciência de que seu poder duraria enquanto gozassem da confiança do Parlamento e do Imperador. Este, sempre atento na defesa do interesse público, dispunha da prerrogativa de dissolvê-lo, com convocação imediata de novas eleições para que se formasse um novo governo, sempre ouvido antes o Conselho de Estado. A confiança era a pedra angular das instituições.

    A chegada do regime presidencialista, oriundo do golpe militar de 1889, jogou por terra tudo isso. Na prática, nada republicana, tais instrumentos de controle foram abandonados. O presidente da república passou a acumular as funções de chefe de governo e de Estado. Passa a ser o fiscal de si mesmo, tarefa obviamente impossível. Foi início do regime da insensatez.

    Roberto Campos e José Sarney, em meados da década de 1980, previram – e infelizmente acertaram –, que o País se tornaria ingovernável. E cá estamos, desde então, em maior ou menor grau, a colecionar décadas perdidas. O STF, com seus votos, por 8  a 3, favoráveis a Lula e contra Moro, se tornou um superpoder que o senado tem medo de enfrentar por ter cerca de 30% de seus membros com processos nessa corte desmoralizada.  O amadorismo do atual governo tomou conta da política externa, ignorando o legado de profissiona-lismo que nos vem do Barão do Rio Branco. E também no tratamento dado ao meio-ambiente em relação a seus rebatimentos internos e externos.

    Quando comparamos o quadro institucional do Império com o da república, ficam evidentes as falhas gritantes da Carta de 1988 em seus instrumentos de controle efetivo do andar de cima. Dentre outras razões, a ausência de um Chefe de Estado independente, capaz de atuar nas crises, deixa o País à deriva, fato constatado em qualquer roda de brasileiro(a)s quando param para avaliar o desastre político-institucional em que estamos metidos. Em Brasília, a festa continua e nós pagando a conta. Basta!

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