Além da covid, Brasil teve 55 mil mortes por outras doenças acima do previsto
Em 2020, o Brasil registrou 275.587 óbitos a mais que o previsto para o ano. Desse total, 220.469 foram vítimas da covid-19, mas outros 55.117 morreram por outras doenças. Os dados constam de levantamento feito com base em números do estudo Excesso de Óbitos no Brasil, da organização em saúde Vital Strategies, no painel do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). As estatísticas indicam que, além das perdas pelo vírus, a crise sanitária causou mortes de quem poderia sobreviver em outra situação.
Com o isolamento social, necessário para frear o novo coronavírus, houve dificuldade de atender pacientes crônicos, realizar exames e fazer diagnósticos precoces de doenças graves. A extensão desse problema no sistema de saúde brasileiro assusta a população e preocupa médicos e especialistas em outras enfermidades, que já trabalham com projeções de até 50 mil casos de câncer para este ano por causa do abandono de tratamento ou atraso na identificação da enfermidade.
“A gente atribui isso, em parte, ao cancelamento ou adiamento dos procedimentos médicos que deveriam ter sido feitos, como exames”, afirma a coordenadora do estudo e professora da UFMG, Fatima Marinho. “Quando os pacientes chegam ao hospital, já estão em situação mais grave”. Segundo ela, as pessoas têm receio de ir ao hospital com medo de se infectarem com o coronavírus.
A pesquisadora explica que o pico até dezembro ocorreu na semana epidemiológica 20, virada de maio para junho, com 33.569 mortes, ante as 23.727 esperadas conforme o balanço dos anos anteriores. Foi um aumento de 46% das mortes esperadas naquela semana. Durante todo o ano, a linha da curva das mortes esteve acima da curva de dados projetados com base nas médias de anos anteriores.
Casos de câncer
Para oncologistas que acompanham a evolução da pandemia, a preocupação agora é com projeções que apontam 50 mil novos casos de câncer que deixaram de ser detectados no ano passado por causa da escassez de diagnósticos no período. Segundo Daniela Dornelles Rosa, diretora da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) e oncologista do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, houve forte queda nas consultas. Só no centro de oncologia do hospital, houve desistência de 720 pacientes e mais 264 do centro de mama. “Se formos computar com fevereiro e março, são 3.436 desistências de consulta em três meses”, argumenta a diretora da SBOC.
“O quanto isso vai acabar resultando em mais mortes, a gente ainda não sabe mensurar”, afirma a oncologista. “Mas quando a gente pensa em outras doenças, como as cardiovasculares, existem publicações mostrando que há, sim, um maior número de casos de pacientes que podem, inclusive, acabar morrendo em casa”, diz Daniela Rosa.
A projeção nacional de novos casos de câncer apontava, segundo estatísticas de 2019, para a ocorrência de 625 mil diagnósticos anuais no triênio 2020-2022. Para Daniela Rosa, o importante agora é que as pessoas procurem o médico para identificar a doença no estágio que ainda permite a cura. “Nossa recomendação é que não se cancelem exames”, afirma a oncologista.
“Talvez se eu tivesse esperado um pouco mais não teria a sorte que eu tive”, conta a advogada Mariana Peirano, de 40 anos, que descobriu um câncer em outubro e passou por cirurgia em novembro. Segundo ela, os protocolos do hospital a deixaram segura. “Convivi lá com pessoas na químio que sentiram o nódulo no seio e ficaram com medo de fazer o exame. Quando foram fazer, descobriram que já estavam com metástase. Vamos lembrar que é uma doença em que meses podem fazer diferença”, completa.
O cirurgião oncológico Alexandre Ferreira de Oliveira, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO), não tem dúvidas do impacto da covid sobre as doenças crônicas. Ele cita levantamento da Sociedade Brasileira de Radioterapia que mostra redução de 46% nas radioterapias para mama no País. “Houve também queda de 47% na detecção de novos casos no Hospital AC Camargo, de São Paulo”, afirma. São dados de pacientes de câncer de colorretal entre março e julho do ano passado, em comparação com o mesmo período de 2019.
Oliveira avalia que o principal problema é que as pessoas não estão fazendo os exames necessários para rastrear a doença. “O diagnóstico precoce é fundamental”, diz. Ele lembra de casos recentes, como o de um professor dele que foi encontrado morto em casa, por complicações cardíacas. E de uma paciente, que é dentista, que não fez os exames de acompanhamento para rastreamento de câncer no último ano e que acaba de detectar o avanço da doença. “Isso é muito comum nos consultórios”, afirma Oliveira.
“No Reino Unido, uma prospecção aponta que haverá 18 mil casos a mais de mortes por câncer neste ano devido à falta de diagnóstico precoce”, diz o médico. “O nosso medo é que as doenças crônicas matem mais do que o covid”, alerta.
Registro Civil
“É uma situação gravíssima, porque há forte impacto direto e indireto da covid sobre o sistema de saúde, e isso vai provocar alteração até no perfil da população e na economia”, diz Gustavo Renato Fiscarelli, presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). A entidade é parceira do grupo que trabalhou no estudo Excesso de Óbitos no Brasil, da Vital Strategies.
Segundo Fiscarelli, que dirige um cartório civil em Cotia, na Grande São Paulo, “verifica-se acréscimo absurdo no número de óbitos”. Ele explica que a média anual de óbitos, desde 2003, era de 1,1 milhão de pessoas. No ano passado, por conta da pandemia, subiu para quase 1,5 milhão. “E aí fica claro que, mesmo somados os cerca de 250 mil da covid registrados até dezembro, há excesso de óbitos de pessoas que não tinham covid, mortos por outras doenças”. Para ele, “isso é reflexo da covid, porque há o isolamento das pessoas, falta de tratamento,de leitos, hospitais lotados, abandono e adiamento de tratamentos regulares”, enumera
Para a médica Clarissa Mathias, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), as pessoas têm deixado também de fazer controles essenciais para a saúde. “E isso aumenta os fatores de risco de adoecer. As pessoas estão dormindo mais, voltando a fumar, ganhando peso”, alerta. Ela explica que os dados do ano passado apontam que mais de 74% dos profissionais entrevistados relataram ter tido ao menos um paciente que interrompeu ou adiou tratamentos por mais de um mês na pandemia. E que, para 22,5% dos oncologistas, houve obstáculos para a realização de exames. Só 1% disse não ter notado resistência aos procedimentos.
O ator Tom Veiga, intérprete do papagaio Louro José na televisão, foi encontrado morto em casa, em novembro, vítima de um AVC. Pessoas próximas, porém, acreditam que a covid-19, doença que o artista contraiu em março do ano passado, pode ter contribuído para a piora na saúde do artista, que também era fumante. “Ele tinha só 40% da função pulmonar, mas estava tratando disso”, contou Edson Sobrinho, advogado da família de Veiga.
Sudeste (38%), Nordeste (32%) e Norte (12%) são as regiões com mais excesso de mortalidade. O Centro-Oeste (10%) e o Sul (9%) tiveram menor impacto em 2020. As capitais foram mais duramente atingidas pelo excesso de óbitos, especialmente Manaus, Belém, São Luís, Fortaleza, Recife, Salvador, Rio e São Paulo. “O Amazonas, com aumento de 52% das mortes esperadas, é o mais impressionante, mostrando extermínio de parte da população do Estado, que continuou em 2021”, afirma Fatima Marinho, coordenadora do grupo de estudos.
Ela destaca que o Estado de São Paulo é afetado pelo alto número de mortes, mas não tem o excesso de mortes encontrado, por exemplo, em Estados como Amazonas e Rio. “São Paulo teve excesso de óbitos de 41.986, mas isso é 15%. No Rio, o excesso de mortes foi de 25%, acima da média nacional (22%). Já o Amazonas tem 52% de excesso de mortes”, explica. “E isso vai se repetir em 2021” alerta.
Luiz Fernando Ferraz da Silva, professor da Faculdade de Medicina da USP, também prevê piora este ano. Ele usa o colapso da rede de saúde em Manaus, em janeiro, para exemplificar as causas e consequências da alta de mortes por falhas de assistência. “O indivíduo tem enfarte em casa, chama o Samu, que o leva a um hospital. Mas, chegando lá, não tem leito. E o Samu não pode deixar o paciente se não houver leito. Ele, então, fica dentro da ambulância. Daí, outro paciente precisa da ambulância e já não tem carro suficiente, demora mais para chegar. E sabemos que a demora diminui a chance de sobrevida”, diz ele, que é ainda diretor do Serviço de Verificação de Óbitos da capital paulista.
“É preciso que governo federal, estadual e municipal, e autoridades em geral, trabalhem para reduzir mortes e hospitalizações. Usar das lições aprendidas em 2020 poderia salvar milhares de vidas e muito sofrimento. O que estamos vendo no País é uma morte anunciada, uma crise humanitária sem precedentes”, afirma a pesquisadora da UFMG.