Em livro, Leão Serva analisa imagens bélicas à luz da teoria de Aby Warburg
O nome do historiador de arte judeu, nascido na Alemanha, Abraham Moritz Warburg (1866-1929), ou simplesmente Aby Warburg, tem encontrado entre os leitores contemporâneos apaixonados seguidores. Um dos principais estudiosos do Renascimento, Warburg foi também colecionador de imagens de guerra. Atraído pelo conceito formulado pelo historiador em 1905 (Pathosformel) sobre a transmutação dos gestos da Antiguidade pagã na modernidade, o jornalista Leão Serva, diretor do Departamento de Jornalismo da TV Cultura, passou um tempo estudando essa coleção no Arquivo Warburg da Universidade de Londres para escrever sua tese de doutorado, apresentada na PUC em 2017 e agora transformada em livro, A Fórmula da Emoção na Fotografia de Guerra, que será lançado pela Edições Sesc nesta quarta-feira, 14.
Trata-se de um estudo original não só sobre fotografias de guerra preservadas e colecionadas por Warburg (todos os exemplares que não se perderam em sua transferência para Londres), mas, principalmente, sobre o que mudou no conceito de Pathosformel em mais de um século. Mudou o mundo, mudaram as guerras e também o jeito de olhar para a carnificina dos conflitos bélicos. E a “fórmula da emoção”?
O próprio Serva cobriu guerras como repórter, da Bósnia-Herzegovina nos anos 1990, durante a divisão da Iugoslávia, aos periódicos conflitos étnicos do continente africano, atestando essa mudança desde a época de Warburg, quando, de fato, a palavra ‘pathos’ podia ser traduzida como uma emoção intensa ligada a experiências existenciais extremas como a guerra. Hoje, com a falta de empatia diante de uma catástrofe como a pandemia do novo coronavírus, é possível que Warburg tivesse de inventar outro conceito além de Pathosformel.
“Warburg intuiu, já durante a Primeira Guerra, que começava a ‘guerra europeia’, reagindo como se estivesse diante de uma onda antissemita duas décadas antes da ascensão do nazismo”, lembra Leão Serva. A exemplo de Warburg, ele atestou que as pessoas parecem necessitar cada vez mais de imagens violentas, o que explicaria o crescimento da audiência do jornalismo de guerra mesmo em países que estão longe dos conflitos bélicos.
“Cada capítulo do livro é um painel de fotos sobre temas arquetípicos”, diz Serva, buscando, a exemplo de Warburg, pontos de semelhança entre imagens da Antiguidade e do Renascimento e fotografias contemporâneas de guerra. É assim que o livro abre com uma foto do brasileiro André Liohn, que mostra um combatente ferido na batalha de Misurata, noroeste da Líbia, em abril de 2011, ao lado de uma gravura de Dürer, inspirada em Mantegna, retratando Orfeu (1494) sendo trucidado por mulheres ciconianas (por ser pederasta e recusá-las, segundo a inscrição no topo da árvore). Os gestos do soldados e do combalido Orfeu são os mesmos e traduzem o estado agônico de um homem reduzido à condição animal. Se o gesto de Orfeu é uma ressonância dos vasos gregos, o do soldado líbio ecoa o gesto do mito.
“Fiquei impressionado com a teoria de Darwin sobre a similitude da expressão das emoções nos homens e nos animais e como ela foi fundamental para Warburg construir o conceito de Pathosformel”, lembra Serva, justificando a justaposição de uma foto contemporânea, a de André Liohn, à imagem da gravura de Dürer que resume a mesma bestialidade humana. Outra foto icônica – desta vez não da coleção Warburg – escolhida por Serva é a do guerrilheiro argentino Che Guevara morto e jogado numa mesa como um corpo de Mantegna ou um cadáver de Rembrandt pronto para dissecação. Não é possível saber se o fotógrafo Marc Hutten, o autor da foto, tinha em mente essa associação analógica, mas a fotografia de guerra – que o diga Robert Capa – sempre esconde uma perversa intenção estética.
“A (acadêmica inglesa) Caroline Brothers diz que a foto mais famosa da Guerra Civil Espanhola é montada.” Mesmo assim, a imagem do miliciano de Alcoy caindo ao ser mortalmente alvejado ainda provoca. Pode não ser verdadeira, apenas um registro da parcialidade ideológica de Capa, mas retrata o horror da guerra. “Ela é, nesse, caso, ‘patética’, quer mesmo provocar emoções fortes”, argumenta Serva.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.