• ‘A literatura possibilita outro existir’

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  • 01/04/2021 08:00
    Por Estadão Conteúdo

    Desaparecer da vida de alguém abruptamente, sem deixar explicações ou vestígios. A prática não é de hoje, mas ganhou novos contornos no meio digital. E também um nome: “ghosting” (de “fantasma”, em inglês). Em Copo Vazio, mais novo livro da psiquiatra e escritora paulistana Natalia Timerman, a protagonista, Mirela, passa precisamente por essa experiência. Arquiteta bem resolvida, ela conhece Pedro por meio de um aplicativo de relacionamentos. Durante três meses, eles se envolvem, se encontram com frequência e fazem planos juntos. Certo dia, no entanto, ele a deixa sem qualquer explicação, como se nunca tivessem tido qualquer vínculo.

    Nesta primeira incursão de Natalia no romance, acompanhamos, assim, os desdobramentos desse abandono na rotina da protagonista, em uma prosa que reflete a intensidade de seu desespero. Autora de Desterros: Histórias de um Hospital-Prisão (2017) e da coletânea de contos Rachaduras (2019), Natalia dedica seu doutorado na USP ao estudo da obra de Elena Ferrante. Um dos traços da obra da italiana é o despudor em expor a vulnerabilidade de suas personagens mulheres, algo que a escritora paulistana faz, em Copo Vazio, com uma originalidade que se estende à própria construção narrativa, em capítulos desordenados cronologicamente. A seguir, confira a entrevista completa ao Estadão.

    Não faltam histórias de abandono na literatura. Seu romance, no entanto, traz ingredientes adicionais, como a internet e aquilo que se convencionou chamar de “ghosting”. Mirela, a protagonista, também acaba usando as redes para “stalkear” Pedro. O que muda nesse tipo de relação mais ligado ao mundo digital?

    A internet e as redes sociais aumentaram vertiginosamente as possibilidades de encontro, mas sob o preço de que, pela própria abundância, as relações advindas daí pareçam descartáveis. Pessoas sem vínculos em comum, que não chegariam a se conhecer fora do mundo digital, talvez sejam menos cuidadosas para romper um relacionamento, porque teriam menos chances de se encontrar por acaso e porque não precisariam zelar por suas imagens diante de um grupo. Esses ingredientes potencializam questões que existem há séculos e as tornam, hoje, efervescentes. Um perfil e uma pessoa não são a mesma coisa, mas a confusão entre ambos facilita que haja expectativa em excesso. Quando não correspondida, essa expectativa recai em falta de zelo para com o outro que, afinal, existe de fato, para além da virtualidade.

    A protagonista é uma mulher emancipada, progressista… Faz parte de um universo no qual o feminismo tem mais proeminência. Você vê algum conflito entre esses valores e a vulnerabilidade que ela acaba revelando ao longo da trama? Nota alguma pressão para mulheres como Mirela mostrarem-se sempre fortes e seguras?

    Um dos componentes do sofrimento de uma mulher contemporânea por amor é a vergonha pelo próprio sentimento. Nosso imaginário é povoado de finais felizes de histórias românticas, nossa gramática está estruturada na dependência que uma mulher já teve de um homem, e a independência já conquistada pelo gênero feminino não condiz com essa narrativa. O embate interior que resulta desse impasse ainda não tem solução, e a literatura pode ser uma das maneiras de expressão desse estado de coisas. Quem sabe seja, também, um aceno para outras possibilidades de existir, seja pela improvável superação da vulnerabilidade amorosa, seja pela assunção de que sentir é, afinal de contas, legítimo. Há alguma força em se saber frágil.

    Ao longo das páginas, nota-se que o sofrimento de Mirela vai além da questão do ego ferido por ter sido abandonada. Em diferentes momentos, ela imagina o futuro que poderia ter tido com Pedro, e a necessidade de se desvencilhar dessas ilusões parece atordoá-la. Essas reações são diferentes facetas do sentimento de abandono ou fazem parte de um mesmo processo?

    O sentimento de abandono, principalmente quando é abrupto, aguça uma falta constitutiva. Somos insuficientes desde que nascemos e seremos até o fim da vida, mas a cada vez que essa verdade se torna aguda, lateja como se fosse nova. Esse parece ser um dos aspectos existenciais que precisam ser elaborados em cada ruptura, mas há outros. Além de insuficientes, e talvez por isso mesmo, somos seres que tecem narrativas com a própria vida. Um devir que se interrompe, uma promessa retirada, nos deixa, lançados em direção ao futuro que somos, sem lastro para o presente. Isso acontece para além das situações amorosas, e o contexto brasileiro de manejo à pandemia, por exemplo, pode ser uma amostra: a sensação de que nos roubaram o futuro que nos havíamos permitido sonhar torna o cotidiano muito mais difícil.

    Os paralelos entre seu livro e Dias de Abandono, de Elena Ferrante, não passam despercebidos. Além do tema da mulher abandonada, é possível notar como o desespero e a obsessão das protagonistas refletem-se na própria prosa. Esses registros textuais foram um efeito calculado?

    Copo Vazio tem uma circularidade que ecoa a obsessão de Mirela e pretende uma linguagem densa e veloz que traduza sua urgência. A prosa de Dias de Abandono, por sua vez, manifesta a claustrofobia de Olga, como se ela estivesse presa não só em sua casa, mas também nas metáforas que a dizem. Muito do que escrevemos acontece na linguagem por conta própria, sem passar necessariamente pela consciência. Talvez por isso seja mais difícil começar, estruturar uma narrativa, tomar decisões quanto ao ponto de vista, tempo, caracterização de personagens que, se suficientemente coesas, se capazes de formarem o todo do romance, tecem a prosa como que de dentro para fora. Uma palavra puxa a outra, puxadas todas pela protagonista, pelo que ela pede para existir: o mundo ficcional e a linguagem que o erige e sustenta são interdependentes, um só existe com a outra, e isso é a literatura.

    A produção da escritora, aliás, é tema de sua pesquisa de doutorado. No processo de escrita de seu livro, Ferrante apareceu como uma referência imediata?

    Tudo o que lemos, assim como tudo o que vivemos, transluz na escrita, senão tematicamente, ao menos no estilo. Os livros também são parte da nossa biografia, e suas personagens podem aparecer nos nossos sonhos tanto quanto as pessoas reais com quem convivemos. Elena Ferrante é uma referência – como toda paixão -, mas acredito que, mais que na temática específica do abandono ou mesmo na linguagem, ela me inspire pela coragem de se debruçar de verdade sobre temas considerados muito femininos. O apuro da linguagem, na obra dela, desfaz o que poderia ser excesso, porque, para a literatura, tudo importa e interessa: a maternidade, a amizade entre mulheres, a inveja, o amor.

    Você já tem publicado um livro de contos. Essa experiência da escrita lhe deu mais segurança para lançar mão de procedimentos formais?

    Acho curioso perceber, no caminho que constitui a obra de um escritor, como as experimentações vão se dando. Mrs. Dalloway, por exemplo, aparece em um conto antes de virar protagonista do romance que leva seu nome; a tetralogia napolitana de Ferrante parece ser a culminação do trabalho de temas recorrentes nas obras anteriores. Algo da obsessão de Mirela e de seu fomento pelo mundo digital já estavam no conto A Decisão de Verônica M., de Rachaduras. Não sei, no entanto, se a escrita de contos proporcionou mais segurança para escrever um romance, primeiro porque cada gênero literário tem suas exigências. Em segundo lugar, porque não há segurança possível na escrita. Escrever é tatear, é desvelar um lugar narrativo que se sustentará ou não por si mesmo, e não é possível confiar num lugar antes que ele exista.

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