• Darko Hunter, à procura de quem sumiu

  • 28/03/2021 07:37
    Por Felipe Resk / Estadão

    Precisou, chama o Hunter. DARKO HUNTER. É assim mesmo, em inglês e com maiúsculas, que o nome está escrito no seu crachá da Prefeitura. Um servidor público, digamos, incomum. “Hunter” (caçador, em inglês) tem a função de sair vasculhando a cidade atrás de pessoas desaparecidas. No ano passado ele ajudou a achar 579 delas. Mais de uma por dia.

    Oficialmente, Darko Hunter é um “investigador social”. O posto: “diretor na Divisão de Desaparecidos da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania”. Nome pomposo, o do cargo. Também está lá no crachá.

    No duro, Hunter gasta a maior parte do dia ralando, atrás do computador ou rodando por aí, à procura de 2.024 pessoas. Esse é, hoje, o número de chamados em aberto na capital paulista. Lista longa, ele sabe: “Não dá tempo de comemorar. É resolver um caso e partir para o próximo”.

    Darko Vieira Cristiano tem 36 anos, reluta em informar o nome de batismo e mantém a barba e o cabelo com um corte meio hipster, apesar de a calvície começar a despontar. Incluiu o Hunter à identidade antes de entrar na Prefeitura, onde ajudou a implementar a Divisão a partir de 2014.

    Fã de motos, ele chega de scooter à sede da secretaria, na Rua Líbero Badaró, bem no centrão de São Paulo, onde ocupa uma sala no 12.º andar. Em tempos normais, divide o espaço com dois assessores. Um está de férias. A outra, em home office. Sozinho, ele fica boa parte do dia de frente para quatro monitores. Foi ele o responsável por desenvolver um sistema que emite alerta toda vez que alguém da lista de desaparecidos faz cadastro em serviço público – o que dá mais resultado do que a investigação, assim, um por um na rua. “Bingou!”, é como se diz ao chegar um desses avisos.

    O lugar de trabalho facilita as diligências. À Cracolândia, ele vai bastante. Outro hábito é acompanhar entregas de almoço para moradores de rua. Afinal, desaparecido também precisa comer. Fazia essas rondas de skate. Agora, trocou por patinete elétrico. Às vezes, dá a sorte de “bingar”. Caçar pessoas exige paciência, faro apurado e um celular extra, 24 horas no ar.

    Trabalho

    Em uma quinta-feira de janeiro, o aparelho tocou pela primeira vez às 11h09: “Divisão de Desaparecidos, bom-dia”. Do outro lado da linha, uma voz pedindo ajuda para descobrir o paradeiro da mulher de 60 anos que acabara de sumir. “Tá, e por que não foi feito B.O. de desaparecimento?”, Hunter perguntou. A resposta veio curta e ficou sem réplica. “Certo… Qual é o nome dela? Data de nascimento? E o nome da mãe?”

    A praxe é ir jogando os dados no sistema ainda no meio da conversa. Se a pesquisa acusa algo (uma entrada no hospital, por exemplo), Hunter entra em contato e pede informações.

    Para colher pistas em locais distantes, põe a jaqueta e sai com a scooter, furando o trânsito. Precisa ser rápido. No geral, as primeiras 48 horas são decisivas. Quanto mais o tempo passa, menor a chance de sucesso. Só que desta vez o feeling bateu diferente. Hunter respirou fundo e torceu o nariz: “Isso tá com cara de violência doméstica”.

    Parte do trabalho é descobrir o motivo do desaparecimento. A maioria das ocorrências é de homem, pardo e com algum problema de saúde mental. Mas não é raro que a pessoa suma de vista após desavenças ou, no caso de mulheres, por correr risco em casa. Não deu outra. O cruzamento de dados “bingou”: a mulher que “sumiu” havia feito cadastro em um albergue horas antes e disse estar fugindo do agressor, o marido.

    Na caça de desaparecidos, uma investigação bem-sucedida nem sempre quer dizer devolver o procurado à família. No caso específico, a mulher foi encaminhada a um serviço de proteção.

    Imersão

    Com cinco furos em uma orelha, dois na outra e mais de 20 tatuagens, Hunter gosta mesmo é de pilotar a moto ouvindo rock’n roll. De Raul Seixas a Radiohead. É assim que faz o trajeto de casa, em Parelheiros, extremo da zona sul, até o centro de São Paulo. Leva uns 50 minutos. Bate cartão na secretaria às 11 horas.

    A mesa é uma bagunça. Tem papelada, meia dúzia de canecas, lupa, um microscópio em miniatura e dois maços de Chesterfield, marca mais barata de cigarro. Também deixa uma penca dos seus livros favoritos – entre eles, Diário de Um Jornalista Bêbado, escrito por outro Hunter, o Thompson. Na parede, um mapa da capital e 14 fotos de casos antigos sem solução. Neles, as vítimas têm as feições envelhecidas digitalmente.

    Nas missões, já fingiu ser do “esquadrão antimáfia”, mensageiro de Deus e já resgatou até gente que jurava estar fugindo de um meteoro. “Esses casos foram tendo sucesso e eu fui aprimorando as técnicas”, explica. De tanto promover reencontro de famílias, chamou a atenção da Delegacia de Desaparecidos e da DHPP, com quem hoje faz parcerias. Pelos dados do Fórum Brasileiro de Segurança de 2019, só no Estado de São Paulo há hoje 21.175 pessoas desaparecidas.

    Hunter lida com 100 a 150 novos casos por mês. Em épocas de campanha de conscientização (com fotos de desaparecidos passando na TV Metrô), a demanda sobe ainda mais.

    Em família

    Certa vez, foi com ele mesmo. Tarde da noite, a mãe ligou dizendo que o marido foi ao pronto-socorro e não dava notícia. Hunter foi com a scooter até o lugar e viu, pela câmera, que o pai já havia saído. “Aí veio o estalo de procurar o hospital de referência. ‘Bingou’, mas poderia não ter ‘bingado’. Foram seis horas de agonia.”

    Com essa rotina, difícil é dar atenção à vida pessoal. O investigador já desistiu da graduação de Psicologia, após cinco semestres, e de Ciências Sociais, onde fez o primeiro. De uns tem prometido a si mesmo “desligar mais” do serviço e até começou o curso de Filosofia. À noite, é o estudante Darko Vieira Cristiano Hunter. Sim, o “Hunter” também. Está lá na matrícula. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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