• Brasileiro se torna 1º estrangeiro a ser capitão em seleção inglesa de futsal

  • 23/03/2021 06:00
    Por Raul Vitor, especial para a AE / Estadão

    Raoni é um nome indígena, que na língua tupi é dado ao líder da tribo ou a um grande guerreiro. Está relacionado a força e liderança. O primeiro estrangeiro a herdar a braçadeira de capitão da seleção inglesa de futsal, curiosamente, é brasileiro e foi batizado com tal nome pelo pai, que queria que as raízes do País acompanhassem o filho ao longo da vida. Quando saiu de Londrina, cidade do interior do Paraná, Raoni Medina não imaginava que se tornaria um dos melhores jogadores de futsal da Inglaterra, a ponto de ser capitão da seleção inglesa.

    Sua trajetória com a bola foi iniciada quando criança. Aos 5 anos, ele já treinava por incentivo do pai. “Entrei primeiro no futsal, depois na escola”, conta Raoni, em entrevista ao Estadão. Na adolescência, iniciou o processo de transição para o campo e, aos 19 anos, foi contratado por uma agência, que o levou para jogar no Sporting, de Portugal. Apesar do pouco espaço que teve, ele aproveitou os treinos e teve o privilégio de dividir o gramado da academia de futebol com o jovem português, na época franzino, nascido na Ilha da Madeira, Cristiano Ronaldo.

    “Eu não era selecionado para jogar, mas treinava todos os dias. Cristiano era jovem. Devia ter entre 15 e 16 anos e dividia o espaço de treino com a gente, do sub-23. Ele era muito diferenciado e já tinha essa mentalidade de campeão”, recorda Raoni, que durante seis meses ficou no clube, até ser abandonado por seu empresário. “É aquela velha história, o cara que me levou desapareceu e eu fiquei a ver navios.”

    Desiludido por “não ter dado certo”, Raoni resolveu desistir do sonho de se tornar jogador. A princípio, ele não retornaria ao Brasil imediatamente. Sua ideia era passar seis meses na Inglaterra, aprender o idioma e voltar para Londrina, onde tinha a pretensão de se graduar em Educação Física. Um convite para voltar a jogar futebol, no entanto, fez com que ele permanecesse no continente europeu. “Rodei por diversos clubes semiprofissionais da Inglaterra. Isso até os 25 anos, quando meu primeiro filho nasceu e eu pensei em parar de jogar”, conta.

    Raoni disse que se sentia iludido com o que fazia. “Não dava mais para achar que eu era jogador e viver sem pensar no amanhã”, conta. Ele queria continuar dentro dos gramados, mas não na condição de semiprofissional. O problema é que no esporte o tempo voa. Com 25 anos, já não tinha mais espaço para se consolidar nas primeiras divisões. “Eu precisava ganhar o dia de amanhã e pensava: o que vai ser quando eu parar?”, disse.

    A criação da liga inglesa de futsal, contudo, fez com os planos de Raoni tomassem outro rumo. Ele aposentou as chuteiras de travas, mas tirou do armário o tênis de sola emborrachada. “A liga estava sendo criada. Sabiam que eu já havia jogado e me recrutaram. A princípio, eu não queria ir devido ao amadorismo. Quando eu entro em algo, entro para dar o melhor, mas eles me convenceram que seria uma competição decente e eu fui.”

    Raoni ajudou a estruturar o London Helvecia, time que hoje acumula mais títulos. No início, ele trabalhou em diversas funções. “Eu só não era presidente”, disse. O reencontro com o futsal foi excelente e tirou todas as incertezas que o acompanhavam na vida. Com o passar dos anos, ele ganhou notoriedade e tornou-se um jogador de destaque. Quase sempre entre os melhores, tanto que hoje Raoni acumula 15 títulos da liga nacional de futsal.

    Sua vida estava consolidada, mas ainda lhe faltava algo. “Eu queria fazer parte da seleção inglesa, mas ainda não podia tirar a cidadania por causa do tempo em solo britânico”, conta. Ele esperou. Nesse meio tempo, manteve-se em atividade e jogou por diversos clubes, sempre buscando dar o seu melhor. Não pensou em voltar para jogar no Brasil porque não fazia sentido. Era melhor permanecer onde sua carreira foi construída. Seu passaporte finalmente saiu em 2015. No mesmo ano, Raoni foi convocado.

    Os jogadores ingleses viram com desconfiança a chegada do brasileiro à seleção. “Eles são muito fechados. A cultura é bem diferente da brasileira, principalmente nesse aspecto”, conta. “Mas não me intimidei. Quis provar que estava ali porque merecia. Era minha maior ambição, meu sonho. Minha meta antes do primeiro jogo foi decorar o hino”, conta, recordando que foram duas semanas intermináveis até o som da canção grudar em sua cabeça.

    Raoni chegou à seleção com 33 anos. Ele tornou-se o primeiro estrangeiro a ser convocado. “Eu vim de uma vida muito boa no Brasil, mas tinha amigos que não tinham o que comer. Minha realidade, apesar de distinta da maior parte dos brasileiros, ainda assim era muito diferente da dos britânicos. Meus companheiros de seleção tinham casa, curso superior e um carro do ano. Jogar para eles era um hobby. Para mim, ao contrário, era a vida. Eu precisava batalhar para ter as coisas e isso me fez chegar onde cheguei”, avalia.

    O primeiro ano de seleção foi muito difícil. Raoni conta que não chegou a sofrer bullying, mas algo muito parecido acontecia. Ele respondia a intimidação de seus companheiros dentro da quadra. Sua dedicação chamou a atenção do treinador. O esquadrão inglês havia sido desclassificado da Copa do Mundo e o então capitão tinha deixado a equipe por causa do resultado vexatório.

    Raoni estava a caminho da concentração quando recebeu uma ligação do assistente técnico. “Ele disse que eu teria uma surpresa quando chegasse no hotel”. Entrando no saguão, ele avistou toda a comissão técnica. O treinador, que estava sentado em um sofá, levantou e foi em sua direção. “Eu achei que fosse levar uma bronca. Não estava entendendo nada”, disse. Foi então que o técnico revelou o convite para assumir a vaga deixada pelo líder do time. “Eu aceitei sem pensar duas vezes. A emoção era tanta que subi para o meu quarto tremendo”, conta.

    Se os conflitos com os demais companheiros de seleção já eram frequentes, como capitão foram ainda mais recorrentes, já que um estrangeiro recém-chegado tinha assumido o posto. “Nunca olhei a braçadeira como algo acessível pra mim. Eles andavam com a faca, mas eu nunca dei motivo para me apunhalarem”, explica Raoni.

    A aversão ao brasileiro começou a diminuir depois de seu discurso antes do primeiro jogo no cargo. “Olhei no olho de todos. Peguei o brasão e disse: Estão vendo isso aqui? Ninguém dentro desse ginásio sente esse brasão mais do que eu. Eu escolhi estar aqui! Lutei e sofri para que esse momento fosse possível”, disse Raoni, que, naquela ocasião, estava sob os olhares espantados de seus colegas. Ele marcou dois gols na partida. O último garantiu a vitória à Inglaterra. “Não poderia ter sido melhor”, relembra, saudoso.

    Hoje, aos 39 anos, ainda no posto de capitão, Raoni planeja jogar sua última temporada. Ele espera o futsal ser restabelecido na Inglaterra – está suspenso em decorrência da covid-19. Sua meta é encerrar a carreira do mesmo jeito que entrou, campeão no London Helvecia. Ele estuda para trabalhar nos bastidores e implementar projetos de transição entre futsal e futebol em clubes europeus.

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