Descontrole da covid-19 no Brasil assusta a América do Sul
Peru e Colômbia proibiram voos do Brasil. O Uruguai mandou mais doses de vacinas para a fronteira com o Rio Grande do Sul. O Chile prevê possível quarentena para quem chega do Brasil. Os argentinos impuseram restrições à entrada de brasileiros e a Venezuela tem medo da variante surgida no País.
Líder de contaminações e mortes em números absolutos e relativos na região, o Brasil desperta preocupação nos vizinhos. Este é o sentimento predominante em entrevistas feitas pelo Estadão com moradores de países sul-americanos.
Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou ter grande preocupação com a letalidade e a transmissão do vírus entre os brasileiros. “Se o Brasil não for sério, continuará afetando sua vizinhança – e além”, afirmou Tedros Adhanom, diretor da OMS. O Brasil é o terceiro país com mais vizinhos no planeta – faz fronteira com 9 nações, além da Guiana Francesa, ficando atrás de Rússia e China. “Muitos estão caminhando na direção certa, mas não é o caso do Brasil”, criticou Mark Ryan, da cúpula da OMS.
Embora tenha 3% da população mundial, hoje um em cada quatro mortos por covid no mundo é brasileiro. O País registra ainda recordes negativos em sua média de mortes desde o início de março, mostrando que a pandemia está em seu pior momento.
Para Marcos Azambuja, exembaixador do Brasil na Argentina, o País precisa “voltar aos trilhos” e agir depressa no momento em que a pandemia perde força em outras partes do mundo, com a vacinação. “O Brasil não pode ser retardatário. Não pode se transformar num pária sanitário do planeta”, disse.
“Como grande laboratório da imunidade de rebanho, o Brasil tornou-se uma ameaça para a segurança da saúde global”, afirma a professora Deisy Ventura, coordenadora da pós-graduação em saúde global da USP. “Além de sequelas, mortes evitáveis e do custo para o sistema de saúde em insumos e leitos, a disseminação do vírus favorece mutações virais e novas variantes.”
As restrições afetam ainda os clubes brasileiros que disputam a Copa Libertadores. No início do mês, a Conmebol transferiu o jogo entre Ayacucho e Grêmio do Peru para o Equador. A mudança foi necessária em razão do veto imposto pelas autoridades peruanas à entrada de brasileiros. Os peruanos jogaram no Brasil, já que a tradicional regra de reciprocidade adotada entre nações não se aplica a normas sanitárias. Os brasileiros, portanto, têm recebido tratamento diferente nos países vizinhos em relação ao dispensado a eles aqui.
Este problema não se restringe aos gramados. As restrições deixaram o Brasil de fora do panamericano de mountain bike, que conta pontos para o ranking olímpico. As barreiras para a entrada de brasileiros em Porto Rico, sede da competição e território administrado pelos EUA, inviabilizaram a viagem, prejudicando a corrida dos atletas por uma vaga nos Jogos de Tóquio.
Ao todo, 108 países impedem a entrada livre de brasileiros ou turistas que tenham passado por aeroportos no País, segundo levantamento do Estadão, com base em dados da Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata), sites de agências de viagens e contatos com as embaixadas no Brasil.
Brasil pediu doses aos EUA só após mobilização
O governo brasileiro afirmou que começou a negociar com os EUA a importação de vacinas contra covid-19 no dia 13 de março. A informação, revelada pelo Itamaraty, mostra que o Brasil, portanto, se movimentou para obter os imunizantes assim que soube do pedido de outros países, após a Casa Branca ser pressionada a compartilhar seu estoque de doses e depois que a notícia saiu na imprensa internacional.
No dia 11 de março, o New York Times revelou que alguns países haviam requisitado o excedente de vacinas da Oxford/AstraZeneca que não estão em uso. Segundo o jornal, autoridades do governo do presidente, Joe Biden, analisavam a possibilidade de enviar doses ao Brasil, que é considerado o novo epicentro global da pandemia e um celeiro mundial de novas cepas.
Na ocasião, um porta-voz da AstraZeneca afirmou ao jornal americano que a empresa era favorável à ideia de a Casa Branca enviar doses a outros países. O México foi um primeiros a pedir que os EUA cedessem seu estoque. A requisição foi feita pelo presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, no dia 1.º de março, em reunião virtual com Biden.
No dia seguinte, 12 de março, após a publicação do New York Times, o governo americano foi pressionado a responder se destinaria suas doses para países em necessidade. O questionamento foi feito por jornalistas em diferentes entrevistas coletivas em Washington.
Pressão
Segundo o próprio governo brasileiro, as negociações com os EUA começaram no dia 13, portanto após a ideia ser cogitada pela imprensa internacional, pela AstraZeneca e por outros países. “Desde o dia 13 de março, o governo brasileiro, através do Itamaraty e da embaixada em Washington, em coordenação com o Ministério da Saúde, está em tratativas com o governo dos EUA para viabilizar a importação pelo Brasil de vacinas do excedente disponível nos EUA”, dizia a mensagem publicana no perfil do Itamaraty no Twitter.
O tuíte da chancelaria brasileira veio um dia após o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), encaminhar carta à vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, com pedido de permissão para comprar vacinas estocadas e ainda sem previsão de aplicação no país.
Em ofício a Kamala Harris, Pacheco justificou o pedido de “disponibilidade emergencial” das vacinas reconhecendo que o Brasil é o “atual epicentro” da pandemia e o avanço do coronavírus no País representa um risco ao Ocidente.
Nesta semana, após pressão interna e externa, a Casa Branca anunciou que tem 7 milhões de doses da vacina da Oxford/AstraZeneca para entregar a outros países. Os imunizantes não estão em uso, porque ainda estão em fase de estudos.
Na quinta-feira, os americanos concordaram com o envio de 2,5 milhões de doses ao México e de 1,5 milhões ao Canadá. Reportagens recentes na imprensa americana informam que os EUA possuem um estoque de pelo menos 30 milhões de doses da vacina da Oxford/AstraZeneca, um número que a Casa Branca não confirma.
Durante a semana, em entrevista coletiva na Casa Branca, a porta-voz da presidência, Jen Psaki, confirmou que há pedidos de vacina feitos por vários países, sem revelar quais. O Brasil é um dos que poderia ser beneficiado pelo compartilhamento de doses, pois já aprovou o uso da vacina da Oxford/AstraZeneca e é considerado pela comunidade internacional como uma ameaça global em razão do descontrole da pandemia.
Questionados pela reportagem do Estadão sobre o atraso no início das negociações com os EUA, o Itamaraty afirmou que responderá “oportunamente”. O Ministério da Saúde, por sua vez, afirmou que a questão está na alçada da Casa Civil e do Ministério das Relações Exteriores.