Cine Muda: Um Retrato de Mulher, Fritz Lang
Retornamos ao diretor alemão Fritz Lang, agora nos debruçando sobre um filme de sua fase noir, produzido já nos EUA após seu exílio forçado pela ascensão de Hitler. Analiso Um Retrato de Mulher, sua obra inspirada no romance de J. H. Wallis, publicado e adaptado para o cinema em 1944, em que Lang se aventura a abordar temas psicanalíticos. O filme pode ser considerado um ensaio sobre a terapia clínica, aliás.
Já no primeiro plano da película podemos atestar a centralidade da psicanálise no filme, nele vemos o personagem principal, um professor universitário conduzindo uma aula de psicologia, onde aborda as motivações de assassinos por trás de seus crimes, ao fundo vemos também informações inscritas em um quadro negro, a mais destacada delas é o nome de Sigmund Freud. Nessa primeira cena, inserida com o intuito de nos informar sobre a profissão do protagonista, nos deparamos com uma breve explanação reveladora dos princípios morais de Richard. Em sua palestra, parece sugerir uma relativização do crime de assassinato ao categorizar as diferentes motivações que levariam a este violento ato.
Ao longo da película vai se tornando muito comum nos depararmos com conceitos trazidos de Freud, em certos momentos eles são anunciados de forma explicativa, como ocorre na cena em que Richard fala uma frase ambígua durante a conversa com seus amigos e logo em seguida explica que havia cometido um ato falho. Em uma outra cena, seus amigos – o Inspetor Jackson e o Dr. Michael – o chamam de Dick, um apelido comum a pessoas com o mesmo nome do protagonista mas que também tem um significado de cunho sexual, já que é a gíria em inglês utilizada para se referir ao pênis, dessa forma vemos inserido no filme um dos elementos mais importantes da teoria freudiana – o falo como símbolo representante da vontade. Poderíamos nos perguntar: que tipo de vontade Richard representaria ao encarnar a figura fálica no filme? Por se tratar de uma obra largamente inspirada em Freud, fica explícito que a vontade representada trata-se do desejo sexual. Enquanto lamentam a passagem da juventude, Richard e seus amigos expõem seu desejo pelas aventuras vividas neste período da vida, desejo este que agora encontra-se reprimido, e só pode se manifestar dentro do simulacro controlado do ambiente de um cabaré. Tal desejo dialoga profundamente com o tema do filme, o retrato da mulher pelo qual passaram antes de iniciar a conversa e que vai servir de material para as alucinações de Richard ao longo do filme.
O filme é ao fim e ao cabo uma obra moralista, como já havia sido o clássico de Lang, Metrópolis. O clássico futurista é uma obra política e social, em que Lang apontava saídas para as aflições que os alemães enfrentavam durante o entre guerras, num filme embalado como uma ficção científica. Já este não conta com o cunho nacionalista de Metrópolis, talvez pelo fato de Lang já ter, em 1944, informações suficientes dos rumos que o nacionalismo tomou na Alemanha. Sua obra agora era mais restrita, um conto de classe média, menos pretensioso, mas ainda assim com uma moral bem definida. Dessa vez o diretor teve o claro intuito de reforçar e fazer uma apologia à repressão sexual imposta pela sociedade, de tal modo que o fim do filme serve de sinal de alerta para os homens que se assemelham com seu protagonista. Lang parece estar interessado na manutenção do bem estar da sociedade, ainda que isso signifique a produção de paranóias dentro do cabeça dos componentes desta mesma sociedade.
Não é por acaso, portanto, que antes de cair no sono, Richard encontra na biblioteca do salão em que havia se encontrado com seus amigos um volume de Cântico dos Cânticos de Salomão, um livro bíblico que neste filme aparece numa versão independente dos outros livros sagrados do cristianismo. O livro dialoga com o filme na medida em que registra poesias eróticas escritas por uma mulher para seu amado e, assim como o fragmento onírico do filme, o livro se destaca como um oasis, uma espécie de permissão especial divina para se pensar naquilo que é proibido, pecaminoso, é a volúpia inserida no meio dos livros sagrados, como o sonho erótico inserido no meio do sono do celibatário. O fato do livro estar destacado pode ser uma referência a essa ilusão que o sonho também promove, de que aquele é o verdadeiro mundo real, já que enquanto sonhamos não temos consciência da existência da vida em vigília. Na vida real, o livro de Cântico dos Cânticos encontra-se emoldurado, espremido entre Eclesiastes e Isaías, como se estivesse sendo vigiado, como se essa breve permissão fosse também uma espécie de teste do fruto proibido promovido pelo deus do antigo testamento, que nos desafia a nao lê-lo, nos desafia a não cair tentação, e que nos lembra que a punição é severa. Richard é punido. O Dick acaba por ser auto amputado ao fim da história, num desfecho que me parece previsível de tão coerente com as simbologias evocadas pelo filme. O desejo esvai-se com a morte de Richard e fica o medo, medo de se envolver com uma jovem e bela mulher e ver tudo o que construiu ao longo da vida ir por água abaixo.
Em seus últimos minutos o filme ainda nos apresenta mais referências freudianas quando o protagonista acorda de seu sonho macabro e percebe que as personagens de seu inconsciente não passavam de sujeitos da vida real interpretando outros personagens. A referência aqui também é ao expressionismo alemão, movimento vanguardista no qual Fritz Lang costuma ser enquadrado, já que o desfecho onírico se assemelha ao final do filme Gabinete do Dr. Caligari.
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*Maitêus é petropolitana, formada em História pela Universidade Católica de Petrópolis(UCP) e aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Maitêus explica que a coluna ‘Cine Muda’ surge como uma forma de popularização da “sétima arte”, inserindo o leitor/internauta na história do cinema.