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  • 12/12/2016 13:35

    A alquimia de transformar dor em poesia consiste no trabalho de quem acredita na vida, apesar das adversidades. Como dissera Vinícius de Moraes em “Samba da Bênção”: “É melhor ser alegre que ser triste/ Alegria é a melhor coisa que existe/ É assim como a luz no coração/ Mas pra fazer um samba com beleza/ É preciso um bocado de tristeza/ É preciso um bocado de tristeza/ Senão, não se faz um samba não.”

    A dor é a força motriz do poético, leva-nos a refletir sobre o viver. Encontre alguém, neste mundo, que não tenha sofrido uma desilusão, que não tenha sentido uma dor no peito. O homem é o único animal que transforma sentimento em arte.

    A face de Ferreira Gullar é nordestina. O sol do sertão deixa marcas. Mas tem um luar, onde as estrelas brilham mais.

    “Como dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena/ embora o pão seja caro/ e a liberdade pequena”. Esses versos do maranhense José Ribamar Ferreira, nascido em São Luís, um dos onze filhos do casal Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart, traz a marca do custo de vida: pão caro e liberdade pequena. A “luta corporal” para que todos tenham pão e liberdade vale a pena, obriga-nos a pensar no outro. 

     “O branco açúcar que adoçará meu café/ nesta manhã de Ipanema/ não foi produzido por mim/ nem surgiu dentro do açucareiro por milagre”. Esses versos do poema “O Açúcar” de Ferreira Gullar revelam que a poesia conforta, mas também desestabiliza, expõe a realidade. O poeta desafina “o coro dos contentes”, como fizera o meu conterrâneo Torquato Neto. 

    Ninguém explica como nasce uma amizade. Ninguém determina as razões pelas quais o destino une ou separa as pessoas. Quem me apresentou a poesia de Ferreira Gullar foi uma professora de Literatura Brasileira, tornamo-nos amigos. Ela me deu o livro “Toda Poesia” (1950-1980) de autoria dele. Escreveu na dedicatória:

    “Há pessoas que podiam apenas passar em nossas vidas. Você poderia ser apenas mais um aluno. Mas você se tornou muito mais: AMIGO. Esta palavra diz tudo o que nos une. Que esta lembrança seja testemunho deste acontecimento.”

    Nesse livro, que guardo com carinho, tenho o autógrafo do autor com data de 1984. Nele, vi a realidade em poesia, além de ter registrado a consideração de uma mestra. Eu o desejava, porém estava fora do orçamento de um estudante universitário que tomava conta do próprio nariz.

    Ela já havia lido o livro. E fez algumas observações à caneta. Entre os versos que sublinhou, estão estes: “No mundo há muitas armadilhas/ e muitas bocas a te dizer/ que a vida é pouca/ que a vida é louca.” Nesse poema, “No mundo há muitas armadilhas”, ela também destacou: “Tua janela por exemplo,/ aberta para o céu/ e uma estrela a te dizer que o homem é nada” – sublinhou a palavra céu e escreveu ao lado: “infinito que revela a finitude do homem”.

    Vivíamos um período difícil. Quem sonhava com liberdade não se sentia seguro nem mesmo em sala de aula. O Nordeste nos dá coragem, mas também não esconde o sofrimento que há no pau-de-arara. 

     Essa mestra também cultivou, em mim, o amor que trago pelas palavras. Lendo Ferreira Gullar, aprendi que não é preciso buscar, na fantasia, os versos; estão na realidade. 

    O poeta, que partiu na manhã de domingo do dia 04/12, escreveu: “Sou um homem comum/ de carne e de memória/ de osso e esquecimento. / Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião/ e a vida sopra dentro de mim/ pânica/ feito a chama de um maçarico/ e pode/ subitamente/ cessar.”

    – Poeta, a vida que sobrou dentro de você tornou-se eterna nos seus versos. Obrigado! 

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