‘Não basta só proteger, é preciso reflorestar’, diz Sebastião Salgado sobre projeto de restauração do ecossistema
No fim da década de 1990, quando Sebastião Salgado e sua mulher, Lélia Wanick, herdaram a fazenda que tinha sido do pai do fotógrafo, a paisagem era desoladora. A propriedade, que em seu auge abrigou 2 mil cabeças de gado, não tinha como dar suporte nem para 200. A água tinha praticamente desaparecido, como resultado da retirada da vegetação nativa de Mata Atlântica.
Foi Lélia quem deu a ideia: e se em vez de recuperar a pecuária, trazer a floresta de volta? O resto é história. A maior parte da fazenda Bulcão, em Aimorés (na divisa de Minas com Espírito Santo), foi transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com o objetivo de restaurar o ecossistema, e o casal criou o Instituto Terra, hoje uma das principais iniciativas de restauração da Mata Atlântica no País.
Além de recuperar a mata da fazenda, o instituto transformou o aprendizado adquirido em tecnologia, criou viveiro, plantou mudas e expandiu o plano para a degradada vizinhança no Vale do Rio Doce. Em mais de 20 anos, 6 milhões de mudas de árvores nativas da Mata Atlântica foram produzidas. Os projetos de recuperação em andamento atingem 2,1 mil hectares e 2 mil nascentes.
O plano é recuperar as mais de 300 mil nascentes do vale, mas eles querem também servir de inspiração para todo o Brasil. O País tem meta de restaurar 12 milhões de hectares até 2030, como parte dos seus esforços para combater as mudanças climáticas assumidos junto ao Acordo de Paris.
Com isso em mente, o Instituto Terra lança nesta segunda-feira, 22, a campanha Refloresta, com música inédita do Gilberto Gil de mesmo nome, com o objetivo de incentivar esse projetos. A campanha aproveita como mote que em 2021 começa a Década da Restauração, nomeada pela ONU. Em entrevista ao Estadão, Salgado conta suas motivações para a campanha e sobre o que aprendeu nessa trajetória como ambientalista.
Qual o objetivo da campanha?
O Instituto Terra já há muitos anos trabalha na região do Vale do Rio Doce, no que provavelmente é o maior projeto de água, em campo, no meio agrícola, do Brasil. Aqui a Mata Atlântica foi destruída em quase 99%. Agora lançamos essa campanha de informação, de conscientização, porque o que estamos fazendo é um piloto do que pode ser feito nas centenas de vales de rios brasileiros dilapidados, degradados, com o crescimento dos últimos 50 anos que deixou para trás um deserto ambiental. O que fazemos naquele vale completamente degradado pode ser feito em outros locais. Criamos um modelo de recuperação ecossistêmica, de águas, de formação técnica. Somo o piloto que pode ser replicado.
Vocês estão inseridos na bacia do Rio Doce, que já era bastante degradada antes mesmo do acidente da Samarco. Como é a relação com outros proprietários?
Não é fácil envolvê-los. Tentamos durante quase 20 anos com vários projetos, como desenvolvimento de produtos, melhorar sombreamento, mas o que os envolveu foi a recuperação de nascentes. A maioria já não tem mais água. Quando mostramos a possibilidade de recuperar a nascente, ficaram felizes. Nós isolamos uma área entre 0,8 e 1 hectare, plantamos uma micro floresta, com cerca de 400 árvores. E a partir do segundo ano já tem água até para fornecer para o vizinho. Aí o vizinho também quer recuperar. Fazemos aliados imediatamente. Hoje temos fila de proprietários querendo recuperar nascente, porque a terra perde valor quando não tem água, quando falta até para o gado.
Há uma compreensão deles de que o desmatamento foi danoso?
Tenho uma história pessoal para compartilhar sobre isso. Em 1998, meu filho Juliano filmou meu pai na fazenda para o documentário O Sal da Terra. Em um momento ele aponta para uma área e pergunta: ‘vô, você destruiu a floresta?’ E ele conta que com aquilo ele pôde educar as sete filhas mulheres e eu. Para a época dele, foi a atitude correta, mas no longo prazo, levou ao cenário que temos hoje. Temos uma missão dupla: proteger o que resta de pé, da Mata Atlântica, da Amazônia; e reconstruir o que foi destruído. Como diz o Gil na música feita para a campanha, não basta só proteger, temos de reflorestar. A maior parte das áreas degradadas está completamente improdutiva, onde a única coisa que dá para crescer é a floresta que existia ali. E com isso vamos reconstruir o lençol freático, as fontes de água, o ecossistema do entorno. Se não tivermos floresta, não vamos ter água. Essa consciência vamos ter de ter. É nossa obrigação no Instituto Terra fazer com que as pessoas se reaproximem do planeta, que elas voltem ao meio ambiente, aos rios, às montanhas. A campanha é o primeiro grande passo para mostrar que podemos e temos a obrigação de reflorestar.
Como era a situação da fazenda quando a assumiram? Como está hoje?
Completamente degradada, tudo assoreado, floresta destruída. A fazenda teve mais de 1,2 mil cabeças e não comportava mais de 200. E tem uma coisa curiosa desse processo: as pessoas degradam com a degradação. A fazenda já tinha sido doada quando fomos para lá passar o Natal. Na noite anterior tinha chovido muito e fez deslizar a terra de uma estrada que tinha acabado de ser aplainada por um trator, entupindo o córrego. Aquilo nos deu uma tristeza profunda. Foi Lélia que teve a ideia de que deveríamos plantar uma floresta. Fui atrás do mundo inteiro passando o chapéu. Hoje, até onça, que tinha desaparecido da região nos anos 1930, voltou. Os macacos também. Quando já tínhamos água, pensamos em reintroduzir jacarés. Mas tínhamos uma bióloga grávida que teve um pesadelo de que o jacaré ia comer o bebezinho dela. Falamos para ela ficar tranquila, abandonamos a ideia. Mas após alguns meses, um dia um funcionário veio correndo mostrar uma foto no celular. Era um jacaré chegando sozinho, todo empoeirado. Algum passarinho, algum inseto contou para ele que ali tinha uma área protegida para ele viver e ele voltou.