• Palmares e o movimento negro

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  • 13/02/2021 08:00
    Por Gastão Reis

    Pesquisas existentes hoje nos permitem ter uma ideia mais alinhada aos fatos a respeito do quilombo dos Palmares. No primeiro volume de seus livros sobre “Escravidão”, Laurentino Gomes faz um balanço das versões, à esquerda e à direita, sobre Zumbi. Sem dúvida, ele deixou marcas nas areias do tempo como símbolo da luta e rebeldia dos negros ao status de escravos em que estavam inseridos em nossa história. Palmares nasceu já em 1580, e a presença dos quilombos foi um fato corriqueiro em todo o território nacional na colônia e no Império. Essa busca pela liberdade dá uma resposta contundente àqueles que veem no negro traços de submissão inata.

    Mas a escravidão, para ser realmente entendida, deve ter como pano de fundo uma visão de alguns milênios. Durante 60 séculos, quatro mil anos a.C. e mais dois mil d.C., período em que dispomos de registros escritos do que se passou, a humanidade conviveu com a escravidão como um fato normal da vida. Faz pouco mais de um século que a humanidade se livrou dela.  É também revelador que a palavra escravo tenha sua origem etimológica em eslavo, designação dada a um povo de tez muito clara. Durante séculos, o sul da Rússia foi um mercado de escravos, grande e muito ativo. Não foi, portanto, uma situação restrita ao continente africano. Foi pancontinental.

    Também não foi uma invenção dos portugueses mesmo reconhecendo a crueldade do tráfico negreiro transatlântico por três séculos. O antropólogo e economista franco-senegalês Tidiane N’Diaye nos informa que o tráfico de escravos levado a efeito pelos árabes começou bem antes do século XV e continuou até o século XX. Quase mil anos. E com um grau de crueldade que incluía a castração generalizada de crianças e adultos com práticas que levavam a altas taxas de mortalidade. Daí o pequeno percentual de negros na população dos países árabes. No Brasil foi diferente em termos da participação de africanos em nossa população, que é maior ainda quando levamos em conta a miscigenação, onde é marcante a presença do sangue africano.          

    Nos séculos XVI e XVII, a escravidão ainda era vista como uma realidade permanente que acompanhara o dia a dia de egípcios, gregos, romanos, eslavos e muitos outros povos.  Nas guerras tribais daqueles tempos os derrotados eram tornados escravos pelos vencedores quando não eram trucidados. Tais práticas eram comuns no mundo todo, inclusive na África. Zumbi e Ganga Zumba não escaparam dessas práticas ancestrais. Ambos tiveram escravos em Palmares, segundo Laurentino Gomes e outros autores que não ignoram os fatos em busca de uma versão romantizada ou ideológica do que se passou.

    A organização sócio-política vigente em Palmares não era o que Décio Freitas, jornalista e historiador gaúcho, ligado ao Partidão (PCB), afirmava: “Indubitavelmente, era uma república igualitária, fraternal e livre”. Mais: haveria igualdade civil e política entre os palmarinos. Na verdade, a vida tribal africana era povoada por régulos. E aqui se reproduziu da mesma forma com o mando autoritário de Ganga Zumba, concentrador de poderes de monarca absolutista. Portanto, nem república, nem igualitária, nem fraternal, pois afinal havia escravos. E livre em termos, pois a liberdade não era para todos.       

    O quadro real aqui descrito bate de frente com a visão bastante idílica (e ideológica) atribuída ao quilombo de Palmares. Dadas as condições em que ele realmente funcionava, caberia indagar que tipo de futuro poderia ser esperado se Palmares tivesse se tornado uma realidade abrangente? As práticas demo-cráticas, dificilmente, teriam prevalecido. Basta lembrar do que ocorreu com o próprio Brasil em termos de democracia. Após avanços significativos nessa direção, o país foi tomado por uma ditadura militar em 1889 que acabou dando filhotes ao longo de todo o século XX. Ainda hoje, o país se debate com políticos que não nos representam, desigualdade extrema e corrupção sistêmica. Portanto, democracia real não é.

    A luta do Movimento Negro atual precisa atuar com visão mais ampla. Seus líderes não parecem se dar conta de quem são seus verdadeiros aliados. A república nascida em 1889, como revelam as pesquisas da Profa. Maria Lucia Rodrigues Miller, doutora em educação pela UFRJ, foi um retrocesso em relação aos grandes avanços obtidos pelos negros até o final do Império, em especial no campo da educação. As duas pernas da pinça do atraso foram, de um lado, a proposta autoritária da ditadura científica do positivismo de Comte, queridinho de militares e muitos civis; e, de outro, o embranquecimento como doutrina para “melhorar” a composição racial do País.

    Na verdade, foi o surgimento de um regime com vergonha de seu próprio povo. E tão excludente que, no plano geográfico, privilegiou o tripé Rio, São Paulo e Minas, com a política do café com leite. A exclusão do resto do País lançou as bases da Revolução de 1930, oriunda do Rio Grande do Sul, estado, de um modo geral, ausente dos restritos banquetes republicanos. O desmonte da República Velha manteve saudável o vírus da exclusão. Um pequeno grupo iria decidir o que era melhor para o povo sem consultá-lo. Seguiram-se os 15 anos da ditadura de Getúlio Vargas.

    Pouco depois, veio 1964 com a ditadura militar que jogou o País no arbítrio por 21 aos até 1985. Novamente, o balanço não foi favorável ao povo brasileiro, aqui incluída metade da população composta por negros, pardos e mulatos. O velho processo de excluir das decisões quem paga a conta – o povo.

    Cabe ao Movimento Negro buscar as raízes dessa permanente exclusão. Um bom começo seria estudar suas causas. Ou seja, a ausência do voto distrital puro e da possibilidade de revogação de mandatos para ter controle efetivo sobre os políticos. E ainda, no combate efetivo à corrupção sistêmica nas obras públicas, o bônus por desempenho existente há mais de 100 anos nos EUA.

    Quanto aos aliados, em 130 anos, a república certamente não o foi. A contribuição de Dom Pedro II e da Princesa Isabel foi muito mais efetiva. Basta conhecer melhor nossa História do século XIX.

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