• O homem de Marrocos

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  • 28/12/2016 08:00

    De repente olhava para a folhinha; começava a última semana de dezembro; os derradeiros dias do ano de 2017 corriam no mesmo apressado ritmo de sempre.

    Meu pensamento retroagiu. Estava menino prestes a completar 14 anos de idade naquele ano de 1948. O dia? 24 de dezembro, véspera de Natal.

    Tudo vem chegando de mansinho, como em um sonho. A lembrança de um ancião sobre um dia de menino. É bom dizer que não conhecia a palavra adolescente, seu significado. Não sabia, mas era um. E um daqueles meninos tímidos, enfiado no lar, cumprindo as regras, seguindo a rota do melhor que papai e mamãe podiam prodigalizar. Naquela década de 40, de guerra mundial, paz forçada, o mundo em convulsão, nosso país dando um basta na ditadura, mas elegendo o candidato do governo, era eu apenas um menino sonhador e esforçado, com desejo de ser papel carbono do pai, escritor, poeta, ensaísta, articulista, tão ou mais sonhador do que eu ; com sólida diferença : ele vinha corporificando seus objetivos enquanto eu lia livros de aventuras e de mistérios policiais, desenhava histórias em quadrinhos que só eu lia a relia ; escrevia histórias para meu autoconsumo. E cursava o ginasial com pouco empenho nas matérias que não apreciava e razoáveis notas nas disciplinas que me remetiam aos melhores sonhos de futuro.

    Papai era presidente faz-tudo da Escola de Música Santa Cecília, que mantinha um acanhado cineminha poeira cuja miúda renda ajudava na manutenção do ensino musical. Nos dias 21 a 26 de dezembro o “Santa” (assim conhecido o cineminha) exibiu um filme lindo, em tecnicolor,”Aladim e a Princesa de Bagdá, produção da Colúmbia Pictures, com Cornel Wilde, Evelyn Keyes, Adele Jergens e Phil Silvers nos principais personagens. Ah! Como eu viajei nesses dias da exibição, esclarecendo que ajudava na bilheteria, enquanto os irmãos Bach (Luíz e Arlindo) cuidavam das funções administrativas. Vendia os ingressos e, como prêmio, assistia pelo menos uma sessão no decorrer do dia. Assim, assisti “Aladim” seis vezes. Maravilha inesquecível !

    No dia 24, véspera de natal, cumpri minha missão até as 18 horas. Ao me despedir com “Feliz Natal!” do Luiz, recebi um envelope com um bom trocado, como presente e agradecimento. Imediatamente ganhei o caminho da rua Marechal Deodoro abaixo, atravessei a avenida quinze e entrei na papelaria do “seu” David (Alves Soares) ; comprei livros de aventuras, até o último trocado, mas estava de olho no lançamento d´O Homem de Marrocos”, de Edgar Wallace, massudo volume de 434 páginas. Que alegria comprar livros com meus primeiros ganhos de trabalho !

    Entrei casa a dentro e mostrei a todos o produto de meu trabalho, porém, surpresa, fui recriminado por haver gasto tudo com livros quando poderia ter melhorado a ceia de natal, naqueles anos sem muita fartura ou comprado uma vestimenta qualquer. Maior surpresa foi também papai repreender-me. Afinal entendia que ele gostava de ler, de livros, era um intelectual, só teria elogios para meu ato.

    Não foi assim porque a vida era extremamente difícil, nossa família numerosa, a reunião festiva concorridíssima e qualquer trocado minimizava as agruras. Eu, porém, não tinha consciência disto. Compreendi, não muito mais tarde, que papai sacrificava todo o seu conforto e arquivava ideais para cuidar de nosso futuro.

    E, naquele instante da vida, o futuro estava no manter-se de pé com dignidade e quando a barriga aperta, nunca será o sonho fantasioso de um livro que alimentará o corpo.

    Folheio ainda “O Homem de Marrocos” e todos os livros que trouxe de papai e aqueles que fui adquirindo pela vida na busca de deleite, aprendizado e estudo e compreendo ter aquele intelectual escritor e amante dos livros, toda a razão para lamentar meu egocentrismo. Ele sabia e vivia compromissos que eu nem imaginava existirem.

    A vida foi ensinando e nem sei se aprendi bem a lição ou se continuo irresponsavelmente sob a mentalidade adolescente.

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