• Dois mandis e um pirão

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  • 27/11/2017 12:31

    Às margens do rio Parnaíba, no lado de Teresina, na altura da rua Ceará, um menino, depois de ter ido à escola no turno da manhã, pediu à mãe que o deixasse pescar. Ela permitiu, mas com uma condição: que não mergulhasse nas águas do rio, porque a correnteza estava forte.

    Com o entusiasmo de quem iria a um parque de diversão, o menino catou algumas minhocas perto do jirau em que a mãe lavava a louça, colocou-as em uma lata com terra. Pegou a vara com anzóis e chamou um irmão para ir com ele. Como um amigo dos dois havia morrido afogado no rio Poti, que também banha a cidade, a mãe foi enfática nas recomendações. 

    A pesca era mais um pretexto para estar ali, onde os meninos gostavam de se divertir.  A forte correnteza deixara a água caudalosa. Os irmãos lançaram várias vezes os anzóis e nada pegaram. Já desistindo, o mais velho lançou a linha, quando de repente, sentiu a vara balançar e puxou. Veio um Mandi. Pegou-o triunfante, lançou novamente o anzol e pegou outro, um pouco menor. 

    Os dois ficaram meio decepcionados com a pescaria, esperavam pegar mais peixes como o pai deles, quando saia para pescar. 

    Em casa, entregaram os peixes à mãe, que os limpou e cozinhou. Do caldo, fez um pirão e colocou na mesa do jantar. O mais velho, ao ver o alimento, sentiu uma satisfação heroica, porque compartilhou, naquele dia, com parte da refeição da família. Aquele pirão tornou-se inesquecível, ele mantém até hoje na lembrança. 

    O fato narrado ocorreu há quase meio século. O menino ainda atravessa o tempo, ganhou cabelos brancos, mudou de cidade, mas carrega a saudade do rio.  Só depois de adulto, entendeu o gesto da mãe, que não multiplicou os peixes, porém fez com que todos sentissem o sabor da participação dos filhos na alimentação da família. O mesmo ela fazia com as castanhas de caju que eles juntavam, depois assavam e davam para ela dividir entre os oito filhos. O mesmo ocorria quando recebia deles as castanhas retiradas dos caroços dos pequis que juntavam após serem cozidos. Colocavam ao Sol para secar e depois os cortavam. Pelos exemplos da mãe, o menino assimilou fácil o conceito de comunhão.

    Alguns leitores devem estar se perguntando: – o que há de extraordinário nesse fato tão comum entre os meninos que moram às margens dos rios? 

    – Realmente, não há nada extraordinário. Nada que possa ser manchete de jornal. Mas quis citá-lo para refletir sobre a conceituação do épico que trazemos conosco. Cada pessoa tem consigo lembranças de fatos inesquecíveis, embora não tenha importância alguma para mais ninguém. São momentos únicos que ficam gravados na memória. Não há como mensurar a importância deles na vida de cada um. Sei que a Psicanálise é capaz de colocá-los no divã. Contudo, não há uma precisão milimétrica da influência deles no comportamento das pessoas, porque o viver não é preciso como afirmara Pessoa. Mas deve ser triste nunca se sentir útil…

    Partindo da realidade citada para a ficção, é válido ressaltar a genialidade de alguns autores que criaram seus personagens imersos nos conflitos humanos: Hamlet, Fausto, Capitu, Diadorim, Dom Quixote, Macunaíma, em síntese, o trabalho literário, quando comprometido com a vida, eterniza-se. Mas quando se limita a desabafos, presos ao achismo inconsequente, pautado no próprio umbigo, cai na inocuidade. O estudo da linguagem é imprescindível para quem pretende trabalhar com a Arte da Palavra. O belo não nasce do ódio. O amor é a matéria-prima; a vida, fonte inesgotável de enredos.

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