• As fúrias de março

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  • 10/03/2018 15:15

    Nossos rios. Mansos, rasos, a maior parte do tempo com lâmina de água na espessura de uma gilete. Até o março de águas que dão poesia e canção, promessa de vida no teu coração. Mas que trazem pau, pedra, e às vezes, o fim do caminho. Trazem temor e susto. Pânico. Nos apavoramos com a visão da fúria líquida descendo do Caxambu como tsunamis. Não contivemos o espanto e as preces de socorro à misericórdia divina ao ver rios qual dragões de lama devorando carros, levando muros, arrastando o ônibus. Ah, o ônibus. Aterradora visão do navio paralelogramo, nave estranha levando nossa perplexidade. Um emblema. Para sempre lembraremos do ônibus navegando até bater na ponte.

    Soube que os acadêmicos Gerson Valle e Ivone Sol viveram tarde de terror, presos na Coronel Veiga transbordada, águas esguichando para dentro do carro, a água faminta subindo por seus pés, pernas, colo, até alcançar a altura dos vidros. Os bombeiros os resgataram, para alívio geral. Vi a triste notícia do corpo de Danilo, o agricultor arrastado pela fúria das águas por 23 quilômetros, dos altos do Caxambu até a União Indústria. Vi o relato de Monique Vieira, que viveu o pânico de ficar presa com o marido, dentro do ônibus balançando na enchente, sem notícia das filhas, o carro deles em outro ponto, comido de lama. Vi os relatos de comércios invadidos de lama, observei as pontes cheias de detritos e de lixo, vi os apelos das populações ribeirinhas que perderam casa e coisas. Vi as ruas de Cascatinha e do Itamaraty como uma triste Veneza marrom.

    E percebi o quanto as águas nos revelam. Revelam nossa fragilidade, pois frente ao colosso da enchente somos formigas se agarrando a gravetos. Revelam nossa necessidade de fé, pois frente ao gigantismo do abismo imponderável, é indispensável segurar a mão de Deus, sempre para nós esticada, mas que teimamos desprezar, nos tempos de sol. Revelam nossa falta de civilidade, pois a quantidade de lixo nas grades das pontes e nas cercas das casas demonstra o quanto precisamos nos educar para a vida em comunidade. 

    Mas revelam também os grandes gestos. Houve quem entrasse na água para socorrer pessoas em pânico. Solidariedade pelo celular, de gente que, não podendo fazer mais nada, em meio aos picos de sinal, confortava prisioneiros da enchente, pedia socorro a bombeiros e a pessoas mais próximas dos locais agravados. Mutirões para retirar lama das casas, lavar os comércios, desobstruir ruas.

    É histórica a incapacidade de lidar com as cheias de nossos rios. Pedro II, nos 40 verões que aqui passou, viveu enchentes, acompanhando os transtornos com preocupação e espírito científico. Cobrava providências, efetuava medições pluviométricas, fazia anotações. Introduziu a meteorologia no Brasil, dando ainda recomendações para reflorestamento como prevenção de deslizamentos. Não foi atendido. Na República, em 1895, a tromba d'água no Morin rompeu cidade afora, descascando calçamentos, vomitando os rios para fora dos leitos, destruindo 12 pontes, deteriorando mais 5 e encapando a cidade de lama. Afora as enchentes nossas de todo ano, houve épicas enchentes em 1930, 1945, 1965 e 2001. E as tragédias de 1988 e 2011. É preciso corajoso plano de governo apartidário, para evitar previsíveis danos das inevitáveis tempestades, mas é também urgente maior consciência ecológica e cidadã. O espírito de mutirão do pós enchente precisa se instalar como ato de prevenção continuada.

    denilsoncdearaujo.blogspot.com

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