• A tragicomédia presidencialista

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  • 03/09/2016 12:00

    Décadas atrás, quando ainda estudava na Universidade da Pensilvânia (1977-1980) nos EUA, meio que por acaso, eu me deparei na biblioteca com um estudo de um acadêmico americano sobre os efeitos do presidencialismo na acidentada história latino-americana. Ele dava ênfase ao caso argentino. Seria o sistema presidencialista responsável por tantos golpes e contragolpes nessa parte do planeta? Ou, de fato, ele não pesaria tanto nesses desacertos políticos tão comuns na região? Eu confesso que me surpreendi, na época, com o objeto da pesquisa, já que no Brasil de então não se dava atenção ao tema. Pois bem, de lá para cá, já se vão mais de três décadas e meia, o espaço de tempo de uma geração, e me parece que os efeitos de longo prazo do presidencialismo são bem mais perniciosos do que podem parecer à primeira vista.

    A raiz do problema tem nome e pode ser identificada numa única palavra: confiança. Para ter sucesso, um sistema político-partidário deve se basear na confiança dos representados em seus representantes, coisa que obviamente não acontece no Brasil e em boa parte da América Latina. A nossa constituição e as dos demais países presidencialistas desta parte do mundo simplesmente não contemplam a possibilidade legal do voto de desconfiança. Trata-se, com sólida razão, da pedra angular dos regimes parlamentaristas, como foi o caso brasileiro até 1889, exceção benéfica no quadro latino-americano quando se tratava de pôr fim rápido a maus governos. O filósofo Karl Popper bate nesta tecla em função dos astronômicos custos políticos, sociais, econômicos, financeiros e até culturais da ausência desse recurso constitucional para interromper, no início, a trajetória de governos que acabaram, mas continuam porque o mandato presidencial ainda não terminou.

    Mas temos, poderiam contra-argumentar, o impeachment, previsto em nossa constituição para pôr fim a maus governos. De fato, mas a passo de cágado. Perdemos um ano e meio para depor Dilma legalmente. E ainda tendo que administrar o efeito o-uso-do-cachimbo-deixa-a-boca-torta. O vício da cocaína presidencialista está tão arraigado que a questão da confiança sequer é mencionada. Perdemos tempo precioso para saber se Dilma cometeu ou não  crimes de responsabilidade. E ainda nos perdemos em filigranas jurídicas de que os malfeitos (e bota malfeito nisso!) do primeiro mandato não podem ser julgados  no segundo. Entendeu, caro leitor? Nem eu. Dilma 1, por um passe de mágica besta, é diferente de Dilma 2. Importante enfatizar que, no parlamentarismo, um governo cai simplesmente porque não é mais digno da confiança do Parlamento ou da população. Não se tem que provar nada em justiça, como ocorre nesse enervante e dispendioso bota-fora de Dilma.

    No nosso caso, mais grave ainda, é que Dilma perdeu o mandato, mas não os direitos políticos pelos próximos oito anos, como ocorreu com Collor ou qualquer outro parlamentar cassado. É flagrante a inconstitucionalidade em fatiar a votação do impeachment em duas partes. Perde o mandato, mas retem todas as mordomias, inclusive o direito de se candidatar a cargo público em 2018. Ou ser nomeada para algum cargo que lhe dê imunidade. Abre ainda espaço para que Eduardo Cunha e outros reivindiquem o mesmo tratamento.

    Os romanos observavam com rigor a máxima “Dura lex sed lex”, ou seja, “A lei é dura, mas é lei”. Pois bem, o Brasil acabou de inventar outra máxima que os deixaria de cabelo em pé: “Non dura lex”. Numa tradução ao pé da letra, isso significa que “a lei não é dura”. Ela se tornou flexível, dependendo da interpretação do jurista de plantão. No caso, Le(v)iandovski. Caberia, então, outra tradução, de cunho mais popular, que captaria o espírito (de porco) da coisa toda: “a lei não dura”. No Patropi desvairado, é exatamente isso que está acontecendo. Serviram uma pizza esturricada à população no formato de um prato emborcado sob o qual o senado se enterrou inconstitucionalissimamente.


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